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Diogo Bachega

'Feliz Ano Velho' envelheceu sendo atual e ultrapassado ao mesmo tempo

Publicada há 40 anos, obra de Marcelo Rubens Paiva encanta pela linguagem, mas é carregado de preconceitos maçantes

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Diogo Bachega

Estagiário da Ilustrada, estuda jornalismo na Universidade de São Paulo

Quando comecei a ler "Feliz Ano Velho", me veio à cabeça Holden Caulfield e "O Apanhador no Campo de Centeio". O clássico do americano J.D. Salinger seduziu gerações de jovens com uma representação crua da adolescência e uma linguagem oral cheia de gírias, carregando o leitor por suas dificuldades com garotas, colegas, família e sua época.

Os dois livros, "Apanhador" com mais consenso e "Feliz Ano Velho" com alguma liberdade, flertam com a tradição do romance de formação, que nasceu formalmente na Alemanha do século 18, mas na prática sempre existiu. Ele representa uma narrativa fundamental humana —a do amadurecimento.

Reproduções do manuscrito de 'Feliz Ano Velho', romance de Marcelo Rubens Paiva publicado há 40 anos - Divulgação

Para minha geração, que acaba de chegar aos 20 anos, é como se "Feliz Ano Velho" fosse um "As Vantagens de Ser Invisível" ou um "Sex Education" das antigas.

Duas histórias se entrelaçam no livro. Acompanhamos o acidente de Marcelo, que fratura a coluna ao pular em um lago bêbado e, por meio das visitas no hospital, revisitamos com ele as memórias das várias garotas que chamaram a sua atenção e as lembranças sobre seu pai, "desaparecido" pela ditadura militar.

O elemento político, com a sombra dos militares, foi um dos que mais cativou os leitores quando o livro foi publicado. No entanto, embora as menções ao caos político e à crise democrática sejam marcantes, são também esparsas.

Elas são essenciais para entender a história de um filho que cresceu sem pai e que chorou com a mãe, que havia sido sequestrada pelos militares, mas por vezes são abafadas pela pulsão do imediato, dos prazeres sexuais e do acidente que mudou a trajetória do autor.

Quem é jovem hoje e entrou sem jeito para a vida adulta em meio à pandemia e o desgoverno de Jair Bolsonaro é capaz de simpatizar com isso. Nos sentimos sós, tropeçamos em relacionamentos, temos nossos problemas, e temos o Brasil como um problema.

Precisamos nos engajar e refletir sobre o trecho da história que nos coube, mas também temos nossas vidinhas autocentradas para tocar. A notificação do jornal com o último absurdo político se mistura às do Tinder, do Grindr, do Bumble, e disputa atenção também com a faculdade, a família e os amigos.

O autor mistura passado e presente com habilidade. Quarenta anos depois do lançamento, a narrativa tem uma agilidade e uma fluidez perfeitas para a atenção reduzida e a ansiedade generalizada da segunda década do século 21.

O autor fala sem rodeios sobre sexo, traição, ciúmes, masturbação, drogas e outros temas que ainda chocam o pudor do cidadão de bem brasileiro. Em certo momento, chega a questionar a divindade de Cristo, que vê como um cara incrível e revolucionário.

Mas nem tudo são flores. E, se "Feliz Ano Velho" traz assuntos que continuam quentes, a forma como os traz já parece um pouco morna. Como um jovem burguês e machista —termos que o próprio autor usa para se descrever no livro—, Marcelo carrega seus vícios.

Não é propor nenhum cancelamento afirmar que um livro recheado de termos como "crioulo", "bicha" e "veado", para citar apenas alguns que constavam nas primeiras edições e que depois foram reduzidos ou suprimidos, não seja tão atraente para a minha geração. A sexualização de enfermeiras e mulheres em geral, a tentativa de seu pai de criar um filho "macho", uma passagem aqui e outra ali pejorativa sobre pessoas gordas, colaboram para repelir o novo leitorado.

Aos leitores, do passado ou do presente, vale lembrar que os tempos e os valores mudam, e que bom. A imortalidade de uma obra é dada por sua capacidade de preservar o diálogo com as nossas angústias. "Feliz Ano Velho", portanto, tem grandes acertos

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto não citava que o uso de termos como "crioulo", "bicha" e "veado" foi reduzido ou suprimido nas últimas edições de "Feliz Ano Velho". O artigo foi corrigido

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