Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marilene Felinto

ABL, anacrônica e cheia de escritores medíocres, reproduz exclusão brasileira

Academia pode representar qualquer coisa, menos literatura ou língua nacional, status que ainda conserva

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Ocupe ABL", eis o slogan que criei para o desejo de uma amiga que intentou recentemente promover uma campanha contra o modo como atua a ABL (Academia Brasileira de Letras).

O slogan ficou apenas na piada, e a amiga deve ter desistido do intuito que, conforme alertei, seria luta inglória. Organismo anacrônico, agrupamento de egos deslumbrados —maioria esmagadora de machos brancos ricos—, a ABL pode representar qualquer coisa, menos a literatura ou a língua nacional, status a que se arvora ainda hoje.

Fachada da ABL (Academia Brasileira de Letras), instituição literária brasileira, localizada na avenida Presidente Wilson, 203, na região central do Rio de Janeiro
Fachada da ABL (Academia Brasileira de Letras), no centro do Rio de Janeiro - Mathilde Missioneiro - 1º.jul.17/Folhapress

Se assumisse seu lugar de nulidade da cultura, ficasse quieta lá entre chás, conversa mole, pompa e circunstância, até que não ofenderia. Mas acontece que o atual presidente da organização, o jornalista de direita Merval Pereira, vinculado à Rede Globo e um dos principais articuladores do golpe contra o governo de Dilma Rousseff (PT), resolveu meter a instituição no noticiário do horário nobre da emissora, como se aquilo fosse de interesse do país.

A recente comemoração dos 125 anos da casa ocupou amplo espaço no Jornal Nacional. O discurso oficial do evento foi proferido pelo acadêmico suserano José Sarney, o ex-presidente da República, o oligarca do Maranhão que fez daquele estado um feudo particular seu e de sua família, operando por décadas a vassalagem de grande parte da população maranhense então miserável.

O elo vem de longe e tem objetivos interesseiros, espúrios: mídia e compadrio político, Globo e Sarney, Globo e Merval. Durante seu mandato na Presidência (1985-1990), Sarney promoveu o maior trem da alegria de concessões públicas de rádio e TV em troca de apoio no Congresso. Sob a batuta de seu então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães (eca!), distribuiu mais de mil concessões, inclusive a sua própria família.

Escritor medíocre —aliás, o que não falta na ABL é literatura insossa, dos atuais membros literatos, excetuando-se um ou dois—, nem mesmo por isso Sarney constrange a confraria de "notáveis" que se reúnem para nada e ganhando proventos, sem nenhuma vergonha. Consta que recebem mais de R$ 10 mil por mês entre honorários e "cachês".

A fonte do dinheiro é uma caixa-preta, com vaga referência no estatuto da associação: "Art. 8º - A Academia poderá aceitar auxílios oficiais e particulares, bem como encargos que visem o progresso das letras e da cultura nacional".

O que serão esses "auxílios oficiais"? Dinheiro público? O que é o tal "progresso das letras"? O que tem Merval Pereira ou José Sarney a ver com Guimarães Rosa ou João Cabral de Melo Neto? Coisa nenhuma.

Mas nem Rosa nem Melo —estes sim, representantes da melhor literatura nossa— escaparam, acadêmicos e diplomatas que foram, do convescote elitista que a ABL promove com certos quadros da diplomacia brasileira e com alguns cabotinos do meio universitário.

Também nos eventos dos 125 anos, discursou ali justamente o perfil típico de docente universitário carreirista, capaz de qualquer negócio para se enfronhar e ter destaque em todas as patotas intelectuais dos "eleitos" da classe dominante branca.

Ainda tem mais aberração no estatuto: "A Academia compõe-se de 40 membros efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro". Para as eleições "secretas" dos membros, exige-se, "em primeira assembleia, a maioria absoluta dos membros residentes no Rio".

Quem consegue entender essa precedência pelo Rio de Janeiro senão como resquício da aura imperial da cidade? Ressalte-se que, neste mais de um século de existência, a academia não reservou um único assento para escritor negro ou escritora negra. Preto por preto, que tivesse laureado Lima Barreto, antes de Gilberto Gil. Espantoso, aliás, que gente decente como Gil aceite participar desse conluio patético.

Para além disso, uma academia que se diz de letras e que não tem em seus quadros nomes como Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade não merece reconhecimento.

Trata-se de instituição que só faz reproduzir a organização social bem brasileira, do privilégio para poucos e da exclusão de muitos, que usa a cultura como instrumento de discriminação social, econômica e política.

Recentemente, a ABL criou perfil em redes sociais, para dar um tom de contemporaneidade a sua obsolescência, à estética do fardão, tão cafona e em desuso quanto a produção "cultural" de seus associados.

Fundada nos moldes da academia francesa, e aparentada da portuguesa, a ABL imita os rituais daquela, adotando inclusive o epíteto de "imortais" para seus escolhidos.

Ora, não somos franceses, não somos portugueses. Imortalidade o caramba. Imortal sou eu, que já morri várias vezes e ainda continuo por aqui engolindo esse tipo de sapo indigesto e tão vergonhosamente brasileiro.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.