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Ana Maria Machado

Nélida Piñon, a grande dama da literatura ibérica, conhecia bem seu vigor

Primeira presidente mulher da Academia Brasileira de Letras, escritora morta aos 85 anos pairava acima dos rótulos

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Ana Maria Machado

Escritora, jornalista e professora, ocupa a Cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras. Foi a segunda mulher a presidir a instituição

Com a morte de Nélida Piñon, de repente estamos todos nos sentindo muito tristes nesta República dos Sonhos que é a literatura brasileira. É uma tristeza pela perda da pessoa, com todo seu potencial futuro ainda tão forte, e com todo o peso de sua presença. Mas sabemos que sua obra fica, intacta e intensa, agora prestes a adquirir a verdadeira grandeza que a perspectiva da eternidade lhe concede.

Eu a conheci quando éramos muito jovens, ainda estudantes. Ela estava concluindo seu curso de jornalismo enquanto eu entrava no curso de letras neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, que mais tarde passaria a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Retrato de Nélida Piñon, escritora morta aos 85 anos - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Bem moças, nos cruzávamos de vez em quando em eventos culturais e ela já sabia perfeitamente que queria ser escritora. Das grandes. Sempre teve enorme clareza a respeito do que almejava alcançar profissionalmente e se movia nesse sentido, com trabalho, foco e determinação. Sabia que não era fácil. Não esperava que nada lhe caísse do céu, lutava pelo que queria conquistar.

Já na década de 1970, tornamos a nos encontrar, entre amigos escritores, em várias reuniões de intelectuais que se opunham à ditadura militar, lutando contra a censura e em defesa das liberdades. Ela logo se destacou, ao lado de Lygia Fagundes Telles e Helio Silva, compondo um triunvirato que foi pessoalmente a Brasília entregar às autoridades o documento emanado do grupo.

Convivemos por muitas décadas. Era uma pessoa sempre gentil, atenciosa e agradabilíssima no trato. Grande anfitriã e amante da boa mesa, cultivava afetos. Atenta aos pequenos detalhes que tornam o convívio um prazer: a palavra atenta, a lembrancinha amável, o requinte ao receber.

Mas era firme se lhe ameaçavam pisar nos calos, não hesitava em enquadrar os inconvenientes. Nesse sentido, era um divertido prazer vê-la em ação, sem papas na língua, ciosa em fazer respeitar o que precisa ser valorizado.

Como escritora de uma vasta obra, foi romancista admirada e querida por seus leitores. Ensaísta e conferencista conceituada, várias vezes a vi defender nossa cultura em encontros internacionais.

Cultivando o idioma com esmero, não recuava diante de um estilo único que foi desenvolvendo, que podia ser grandiloquente e quase barroco, no uso de palavras castiças e solenes, que julgava adequadas mesmo se estivessem fora de moda —por mais que isso tenha lhe valido eventualmente ser chamada de neoparnasiana. Pairava acima de rótulos. Conhecia bem seu vigor e sua força.

No plano internacional, indiscutivelmente foi a grande dama da literatura ibérica de nosso tempo, amada em Portugal e na Espanha, sendo filha de galegos que emigraram para o Brasil e que ela sempre celebrou.

Mas muito especialmente, sei quanto vamos sentir sua falta na Academia Brasileira de Letras. A ABL se empobrece sem Nélida —acadêmica exemplar, sempre zelosa guardiã das tradições da Casa de Machado de Assis e da dignidade de nosso legado institucional que tanto amou e honrou como poucos.

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