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Guerra da Ucrânia Rússia

Romance 'O Mago do Kremlin', de Giuliano da Empoli, expõe era Putin

Ensaísta revela a vida na Rússia com estreia vigorosa numa trama de ficção que é atravessada pela realidade o tempo todo

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O Mago do Kremlin

  • Preço R$ 59,80
  • Autor Giuliano da Empoli
  • Editora Vestígio

Não raramente, cientistas políticos, ensaístas ou jornalistas se aventuram na ficção para tentar expandir o escopo de seu trabalho. Consiste em enorme tentação preencher lacunas factuais e especulativas de histórias que no cotidiano demandam a máxima objetividade possível.

Pouco comum é alguém lograr o êxito que o suíço-italiano Giuliano da Empoli tem em sua estreia no romance, com "O Mago do Kremlin", que chega ao Brasil pela editora Vestígio, depois de vencer o prestigioso Grand Prix da Academia Francesa e ser finalista do prêmio Goncourt.

O presidente russo Vladimir Putin em férias na Sibéria, na Rússia - Alexey Druzhinin/AFP

Mais do que contar a história de um dos homens por trás do fenômeno Vladimir Putin, o autor transfigura a alma russa contemporânea em um pequeno monumento literário.

Quando escreveu o best-seller "Os Engenheiros do Caos", Da Empoli traçou as estratégias e táticas comuns do entorno de candidatos a autocratas espalhados pelo mundo, perfilando o trabalho tecnopolítico de manipulação da realidade que embasou todo um populismo à direita no mundo, do italiano Beppe Grillo a Donald Trump, com os efeitos colaterais bem conhecidos no Brasil de Jair Bolsonaro.

Um elo ficou faltando Vladislav Surkov, o "Raspútin de Putin", o "mago do Kremlin". Jovem politólogo russo, ele é uma espécie de pai fundador da igreja mundial da desinformação, tendo emergido do caos social dexado pela ruína dos governos de Boris Iéltsin, de 1991 a 1999, após a debacle soviética na Guerra Fria.

De tão fascinante, Da Empoli dedicou cinco anos de trabalho sobre ele, que só deixou as coxias do Kremlin em 2020, em condições que são descritas de desterro a recuo tático pelos infelizes que tentam ler as opacas runas do poder em Moscou.

Surkov, um aliado tornado inimigo de oligarcas como o já morto magnata Boris Berezovski, é reconhecido amplamente como um dos principais criadores da persona misteriosa e contraditória de Putin, no poder desde o fim de 1999.

Seu papel já era conhecido, inclusive os métodos profissionais, com a aplicação pioneira de fake news, desinformação, algoritmos e, principalmente, a venda da ideia de uma ameaça muito mais formidável do que a realmente ofertada.

Putin, o espião da KGB que mandava matar seus adversários e hoje ameaça uma guerra nuclear em torno do conflito da Ucrânia, nesta visão, é mais construção útil do que realidade.

Mas sua vida pessoal era uma página em branco, tornada colorida no romance com sua transformação em Vadim Baranov. Deixa de ser um humilde ex-militar com raízes tchetchenas e ganha a aura de herdeiro da nobreza exterminada em 1917 pelos comunistas, podendo no caminho recontar a jornada russa de lá para cá por meio de memórias.

Elas são expostas em um longo monólogo a um anônimo interlocutor francês que visita Moscou. Os curtos trechos em que o europeu descreve a capital russa são magníficos, vertidos em prosa seca, sem firulas estilísticas, mas coalhada de pontos de luz em que o lirismo faz o leitor do Da Empoli ensaísta duvidar de que se trata do mesmo escritor.

Como seria óbvio, misturar ficção a uma realidade que está nas manchetes do mundo em 2022 implica riscos enormes. Da Empoli dá de ombros e vai além —seu Baranov tem um caso com Ksenia, pessoa real que viria a ser mulher do oligarca Mikhail Khodorkovski, o mais notório prisioneiro da etapa inicial do governo Putin.

A descrição da Moscou da elite nos anos 1990 é perfeita, com os gângsteres trocando tiros enquanto Mercedes lotadas de prostitutas e álcool singravam suas ruas. Como diz Baranov, numa noite era possível ir a uma festa e acordar dois dias depois nos Alpes franceses.

Também são esmiuçadas no relato as angústias e esperanças daquele ambiente de faroeste liberal que degenerou numa crise humanitária inominável —e na criação de Putin, então o chefe do serviço secreto, como homem-forte a resgatar a Rússia, com a ascensão de um novo grupo dirigente.

A história contada pelo protagonista é povoada por personagens reais. O misto de intelectual amalucado e dândi Eduard Limonov, Berezovski, o casal Khodorkovski, o poderoso assessor presidencial Igor Setchin e, claro, Putin em pessoa.

Ele é chamado ao longo do livro mais pela alcunha "czar", algo óbvia. Da Empoli dá voz a ele, e o que se ouve não é pouco crível —basta assistir ao documentário "Testemunhas de Putin", obra de Vitali Manski, de 2018, e imaginar o líder recitando a prosa do romance.

Essa verossimilhança é um triunfo de Da Empoli, ele mesmo ex-assessor do premiê italiano Matteo Renzi, que comandou a Itália de 2014 a 2016, e hoje dividido entre aulas em Paris e um think tank em Milão. Em vez de engessar sua linha de pensamento, ele a enriquece.

Os feitos de Surkov, na pele de Baranov, estão todos lá —o estímulo a radicais russos no Donbass ucraniano, o uso e descarte de movimentos de juventude pró-Putin e, principalmente, o cinismo abissal que pautou todas as decisões.

Algumas notas de rodapé a mais não fariam mal, apesar do risco da perda da fluência narrativa. E ela brinda o leitor com referências não forçadas a um autor russo central, Ievguêni Zamiátin, cuja distopia proscrita "Nós", de 1924, permeia a história, detalhes da vida soviética e exposições acerca da contemporaneidade que serão vistas com horror pelas franjas politicamente corretas da juventude atual.

É uma aula de Rússia, com motivações não sendo usadas como muletas, mas sim fazendo compreender contextos. Não que Surkov ou Putin tenham sua obra relativizada —o epílogo é uma condenação veemente do niilismo autofágico em vigor no Kremlin, ainda que seja de se imaginar como a obra seria tecida se a invasão da Ucrânia já estivesse em curso.

A guerra começou em fevereiro deste ano, e Empoli entregou sua obra em 2021. Felizmente, sem a contaminação da condenação universal, se tem um quadro expressionista de uma realidade tão próxima e ao mesmo tempo tão alienígena à maioria dos ocidentais.

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