Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Não faz sentido usar arma nuclear na Ucrânia, afirma Putin

Presidente russo diz que mundo vive década mais perigosa desde 1945 e faz oferta de paz à Otan

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Rogozinino (Rússia)

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta quinta-feira (27) que não há sentido político ou militar em empregar uma arma nuclear contra a Ucrânia, país que invadiu há oito meses.

"Nunca dissemos nada proativamente sobre armas nucleares. Só usaríamos para defender a integridade de nosso território", afirmou Putin, que voltou a dizer que Kiev está planejando um ataque com uma "bomba suja", artefato rudimentar de dispersão de radiação.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa em evento em Moscou
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa em evento em Moscou - Serguei Karpukhin -27.out.22/Sputnik via Reuters

"Sabemos onde está sendo feito e como querem usar, talvez com um míssil Totchka-U. Querem provocar uma reação nossa, um ataque nuclear. Não faz sentido para nós fazermos isso, nem política nem militarmente. Assim como não fazia sentido para os EUA atacar o Japão [duas vezes com a bomba atômica] em 1945, a máquina militar já estava quebrada."

A questão colocada é que os quatro novos nacos da Ucrânia que Putin anexou no fim de setembro são, na visão russa, território de Moscou. E lá há disputa territorial em curso, o que enseja a especulação atômica.

Putin afirmou que o mundo vive a década mais perigosa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Ainda assim, estendeu um pedido para os países da Otan, a aliança militar ocidental: "Vamos parar de ser inimigos um do outro".

As declarações ocorreram no encerramento da reunião anual do Clube Internacional de Discussão Valdai, uma entidade ligada ao governo russo que promove encontros com analistas e acadêmicos de diversos países –o Brasil estava representado pela reportagem da Folha.

Desde a semana passada, a tensão nuclear voltou a ser foco central da guerra. A Otan iniciou sua simulação anual de ataques atômicos na Europa, sendo seguida nesta quarta (26) pelos russos e seu exercício Grom (trovão, em russo).

Mais importante, desde segunda (24) o governo russo vem alertando países ocidentais e os aliados China e Índia acerca de um suposto ataque com uma "bomba suja" —o líder disse apoiar uma missão planejada da agência nuclear da ONU ao vizinho.

Kiev, EUA e União Europeia refutaram a hipótese, dizendo que pode se tratar do prelúdio de uma ação de "falsa bandeira", ou seja, algo tramado pela própria Rússia para justificar uma escalada.

O discurso inicial de Putin, de 45 minutos em um hotel a 50 km de Moscou, serviu como uma espécie de resumo do discurso do russo elaborado desde que denunciou pela primeira vez o comportamento americano como hegemônico após o fim da União Soviética, em 1991.

As ideias segundo as quais a unipolaridade é dominada pelo Ocidente começaram a ser alinhavadas em um famoso discurso em 2007 na Alemanha. Nesta quinta, ele ampliou o conceito, apelando aos países da Ásia, da América Latina e da África. "Ou acumulamos os problemas que nos esmagam ou trabalhamos juntos. Sempre acreditei no poder do senso comum. Quanto mais cedo, melhor."

Na fala e na discussão posterior, Putin voltou aos temas da crise que cozinhava desde 2014 no país vizinho e explodiu em uma invasão total, em 24 de fevereiro.

"A expansão da Otan era completamente inaceitável. Fizemos uma oferta no fim do ano, ela foi jogada fora", disse, ao comentar com o mediador Fiodor Lukianov sua motivação para a guerra, "uma surpresa" segundo o interlocutor.

"Não fui eu quem deu golpe na Ucrânia em 2014", afirmou o russo acerca da derrubada de um aliado em Kiev que levou à anexação da Crimeia e à guerra civil no leste do país, hoje espalhada por toda a Ucrânia. Foi, disse, "um jogo perigoso, sujo e mortal".

Voltou a dizer que só a Rússia poderia garantir a segurança da Ucrânia, repetindo a ideia de que o vizinho "nunca foi um país" até o século 20, e respondeu com um seco "não" quando questionado sobre algum arrependimento de alguma ação na Ucrânia —embora tenha dito que sempre pensa sobre as mortes de soldados russos no país vizinho.

Sobre os objetivos da guerra, "a primeira coisa é ajudar o Donbass", afirmou o presidente em referência ao leste ucraniano de maioria russófona.

Putin voltou a criticar a cultura de cancelamento que passou a atingir ícones da arte russa. "Muitos anos se passarão, e ninguém lembrará do nome deles [líderes do Ocidente]. Mas todos lembrarão de [compositor Piotr] Tchaikóvski e de [escritor Fiodor] Dostoiévski".

"Tem de haver um diálogo de civilizações. Valores tradicionais não são algo fixo a que todo mundo tem de aderir. Temos de dar garantias. Querem fazer paradas gay? Deixe-os fazer! Mas não podem obrigar que outros sigam seus passos. Somos um povo russo e ortodoxo", afirmou, voltando a uma de suas obsessões.

Para cada mordida, houve uma assoprada. "A Rússia nunca se considerou superior ao Ocidente. Americanofobia é o mesmo que russofobia. Há um Ocidente com valores tradicionais, que é próximo do nosso. Mas há outro, agressivo, neoliberal, neocolonial. Nunca faremos paz com esse tipo de Ocidente", disse.

Segundo o russo, o neoliberalismo "de estilo americano" vive uma crise doutrinária e não tem nada a oferecer ao mundo. Sobrou também para a ex-primeira-ministra do Reino Unido Liz Truss —"mulher um pouco fora de si"—, por suas falas sobre o risco nuclear na guerra e para a presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi —"vovó"—, por sua viagem a Taiwan. Para Putin, os EUA erram ao destruir a relação com Pequim por causa de Taipé, que Moscou reconhece como parte da China.

Os encontros do Clube Valdai ocorrem desde 2004, primeiramente à beira do lago que lhe dá o nome, de 2014 em diante em Sochi e, desde a pandemia, em 2020, na região de Moscou. No evento, às vezes descrito na mídia ocidental como mera propaganda do regime, Putin costuma delinear seus princípios de política externa e responde a questões da plateia.

As discussões são bastante francas nas sessões fechadas –neste ano, havia mais de cem participantes de 41 países, inclusive o Brasil, representado pelo repórter da Folha. Putin respondeu a uma pergunta do jornal, sobre a eleição presidencial, dizendo manter boas relações tanto com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto com Jair Bolsonaro (PL).

Devido à Guerra da Ucrânia, o comparecimento de ocidentais foi reduzido, e o nome de maior destaque foi do economista americano Jeffrey Sachs, notório crítico das políticas da Casa Branca ante o Kremlin e a China, que participou por vídeo.

Em uma das sessões, a crise nuclear atual foi debatida por especialistas, que veem a tensão em um momento tão alto quanto no fatídico 27 de outubro de 1962, 60 anos atrás, quando a Crise dos Mísseis de Cuba chegou a seu ponto mais agudo.

O jornalista viaja a convite do Clube Valdai 

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