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'A Natureza da Mordida' é mistério que se lê com prazer de Carla Madeira

Escritora instiga ao alternar duas protagonistas que domam as palavras, mas resolução de sua narrativa acaba abrupta demais

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São Paulo

A Natureza da Mordida

  • Preço R$ 59,90 (240 págs.)
  • Autoria Carla Madeira
  • Editora Record

A escritora Carla Madeira virou um fenômeno editorial em 2021. Seu "Tudo É Rio", publicado originalmente em 2014 e reeditado pela Record, foi do boca a boca às listas de mais vendidos no país, beirando os 150 mil exemplares. Foi a autora brasileira mais lida do ano.

"Véspera", seu romance mais recente, deu continuidade ao caminho bem-sucedido. E agora a expectativa está sobre "A Natureza da Mordida", seu livro do meio, que acaba de ser reeditado pela Record.

mulher branca de cabelo castanho encaracolado sentada no encosto de sofá branco
A escritora mineira Carla Madeira, de 'Tudo É Rio' e 'A Natureza da Mordida' - Douglas Magno/Folhapress

Alguns elementos do conteúdo talvez ajudem a entender a acolhida do leitorado. O interesse pela subjetividade das personagens, a curiosidade para explorar a condição humana, a ambiguidade e a autonomia das mulheres retratadas, o direito entregue a essas personagens de errarem e de serem más. Na forma, as construções fluidas, o trabalho cuidadoso com a palavra, a prosa poética com frases altamente tatuáveis também ajudam.

"A Natureza da Mordida" repete um formato já conhecido na obra da autora —os fragmentos. Capítulos curtos, alguns brevíssimos, alternam a voz das duas protagonistas.

Biá, uma mulher velha, psicanalista não mais em atividade, que toma notas sobre o que viu, viveu e lembrou, escreve porque tem dificuldade de dizer em voz alta e, ao escrever, parece organizar onde começa e onde termina sua história —se é que ela termina. Olívia, uma jornalista arrebatada pelo luto, passa a ansiar pelos encontros com sua interlocutora, que provoca nela uma afeição profunda.

Elas se encontram pela primeira vez em um sebo, espaço dos tesouros ficcionais, e daí nasce uma relação de troca, com confissões que só faríamos a uma estranha. Ao compartilharem suas histórias, descobrem pontos de contato entre o que viveram.

Estão as duas lidando com ausências dolorosas, ainda elaborando partidas bruscas, abocanhadas que a vida deu. Há um prazer na leitura do que vai se revelando aos poucos —a trajetória das protagonistas vai se fazendo inteira à medida que avançamos no livro. Sabemos que uma perdeu um amor, a outra perdeu uma amiga, mas não conhecemos o que veio antes. As consequências vêm antes da causa.

São personagens interessantes e fazem parte da perspicácia da autora para brincar com as palavras. Biá e Olívia, por seus ofícios, sabem fazer bom uso do discurso. São domadoras do verbo.

A psicanalista conhece o poder do silêncio, da mesma forma que entende a importância de controlar a narrativa. Quando não dá conta de falar de si, fala de outros, evoca passos de quem está ou esteve em sua vida e, sem querer —ou querendo— também vai dizendo da própria existência. Biá relembra figuras do passado enquanto tergiversa sobre as próprias rupturas.

Olívia, por outro lado, é boa na escuta, sabe cavar para abranger os tantos significados do que se diz e reconhece o valor da repetição, insistindo no que pode sair de novo, no detalhe inédito. Parece estar só ouvindo, mas aos poucos também se revela uma narradora de si.

A alternância de perspectivas instiga e oferece uma quebra na continuidade do universo ficcional de cada personagem. Questionamos o quanto essas narradoras estão realmente dispostas a contar e se estão nos enganando ao aparentarem tamanha sinceridade. Biá está se esquecendo ou está deliberadamente inventando? A confusão de nomes quando menciona outras figuras é real ou, amante que é da ficção, está empenhada em um exercício criativo para aliviar o peso da vida?

Não empolga a estratégia da escritora para revelar, ao fim, as peças faltantes na vida das personagens. O enredo acaba perdendo com a decisão de entregar de bandeja tudo de uma vez a partir de determinado momento do livro. Quase como se tivesse cansado de encaixar os fragmentos e quisesse resolver rápido a história.

Mas, mesmo quando escolhe trocar as saborosas pistas por uma solução narrativa abrupta, a autora segue cuidando de exercer o que marca sua literatura, a lapidação das palavras.

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