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Celeste Ng, de 'Pequenos Incêndios por Toda Parte', lança distopia sobre ódio

Escritora descendente de chineses rebate Estados Unidos de Trump em 'Os Corações Perdidos'

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pintura mostra vulcão em erupção

Obra da artista plástica taiwanesa-brasileira Fran Chang Divulgação

São Paulo

Os pais da poeta Margaret Miu, já na casa dos 60 anos, caminham juntos por um parque americano e conversam em mandarim quando alguém empurra o homem pelas costas. Ele acaba rolando de uma escada, bate a cabeça em uma quina e não resiste. A mulher, inconsolável, infarta no dia seguinte.

Ninguém parou para ajudar o casal de idosos, segundo o que foi relatado depois à filha. O clima não favorecia a gentileza —o Pact, sigla para um plano governamental de preservação da cultura e tradições nacionais, havia acabado de ser implementado nos Estados Unidos. Era uma lei voltada a "fortalecer e unir a nação" após um longo período de crise econômica, segundo os emissários do governo.

"Só não disseram que a união exigia um inimigo comum. Um alvo para o qual direcionar toda a raiva; um espantalho no qual pendurar tudo o que as pessoas temiam."

O espantalho, no caso, é a China, de onde vem a família da autora americana que escreveu a cena, Celeste Ng.

mulher de feições asiáticas com camisa preta
A escritora americana Celeste Ng, que lança o romance 'Os Corações Perdidos' pela Intrínseca - Kevin Day/Divulgação

Cada vez mais popular nos Estados Unidos e com forte entrada no Brasil, Celeste Ng lança agora "Os Corações Perdidos", em que pela primeira vez molha os pés na distopia.

"Eu nunca tive a intenção de escrever uma trama distópica", diz, com placidez invejável, em uma entrevista por vídeo. "Comecei a escrever sobre uma mãe e um filho tentando se encontrar. Mas, quando o mundo começa a parecer que está desmoronando, talvez isso vaze para a literatura."

A paranoia alarmante contra asiáticos, que contamina o livro, não soa tão fora da realidade. A ascensão da China como potência dominante, posição que sempre inflou o ufanismo americano, tem transformado o país e seus cidadãos em bodes expiatórios.

Todo mundo se lembra, por exemplo, da onipresença da palavra "China" na boca do ex-presidente Donald Trump, onde ela se transforma num peculiar "djaina".

O republicano, que deve voltar a ser candidato no próximo ano, não inaugurou o preconceito contra asiáticos, segundo Ng, mas o potencializou —em especial após o surto de coronavírus.

"É impressionante como as coisas se propagam quando um presidente usa linguagem depreciativa contra sino-americanos. Passa a mensagem de que isso é algo bom e abre a porta para que muita gente aja de forma violenta."

Segundo um estudo da Universidade do Estado da Califórnia, os crimes de ódio contra pessoas de ascendência asiática cresceram 339% nos Estados Unidos de 2020 para 2021—um dos episódios mais aterradores foi a chacina promovida por um atirador que vitimou oito pessoas, entre elas seis mulheres de origem asiática, há dois anos. No Brasil, também proliferaram relatos de ataques xenofóbicos de motivação similar.

"Todo país é feito de imigrantes. Eu cresci nos Estados Unidos, este é o meu país", afirma Ng, cujo sobrenome, aliás, se pronuncia "ing". "Mas às vezes as pessoas me olham e não pareço com o que esperam de uma pessoa americana. É preciso fazer um leve ajuste mental. Temos que expandir nossa ideia do que significa parecer americano ou parecer brasileiro."

Seu primeiro livro, "Tudo o que Nunca Contei", encarava as dinâmicas internas de uma família sino-americana ao investigar as razões do sumiço de uma jovem.

"Pequenos Incêndios por Toda Parte" —que se espalhou como rastilho de pólvora e virou seriado com Reese Witherspoon e Kerry Washington— abordava tensões sócio-raciais por outro ângulo, com uma protagonista negra e uma branca na série.

Foi um movimento consciente, diz a autora. "No começo, eu não queria ser vista como alguém que só escreve sobre a experiência asiático-americana, porque muitos autores de minorias eram encaixados num buraco. Você é vista só como uma escritora de origem chinesa, ou só negra, ou só queer, sabe?"

Mas, com seu sucesso literário, ela passou a ser convidada para falar sobre como era descender de imigrantes asiáticos nos Estados Unidos. Achou que podia ser útil para trazer holofotes ao assunto.

Agora ela dobra a aposta com um livro que soa como um sinal de alerta. Em "Os Corações Perdidos", o governo americano, cada vez mais totalitário, usa dois mecanismos para calar opositores do pacto de pacificação nacional.

A primeira é tirar de manifestantes a guarda de seus filhos, transformando as crianças, na prática, em reféns do Estado. É daí que vem o conflito central do livro —a poeta Margaret Miu, a princípio despolitizada, é perseguida pelo governo e foge depois que um texto seu viraliza em cartazes de protesto. A narrativa segue pelos olhos de Bird, seu filho, que se vê abandonado.

A segunda estratégia do regime autoritário é perseguir livros subversivos. Não queimar os exemplares, como se horroriza uma professora colaboracionista do governo, mas simplesmente tirar os livros de circulação —e eventualmente mandar para a reciclagem.

De novo, algo temerosamente similar com nossos tempos, já que o banimento de livros se tornou um assunto inflamado nos Estados Unidos, com juntas escolares proibindo obras de referência e bibliotecários sendo coagidos pelo tipo de obras que disponibilizam ao público jovem.

"Há muita pressão e medo em relação a que tipo de livro se pode abordar", afirma a autora. "É esse medo que me assusta. Que as pessoas se fechem a um livro antes mesmo de começar a pensar. Que não entrem em discussões por medo de serem punidas."

A resolução encontrada pelos opositores do regime, no romance, reflete essa filosofia. Sem entrar em detalhes, basta dizer que bibliotecas cumprem um papel central na resistência política. Sabemos, afinal que é ali que se costumam encontrar os remédios mais eficazes contra o obscurantismo.

Os Corações Perdidos

  • Quando Lançamento em 23/2
  • Preço R$ 49,90 (336 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Celeste Ng
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Fernanda Abreu
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