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Biblioteca Pública de Nova York adquire os arquivos literários de Joan Didion

O acervo inclui cartas, fotografias e manuscritos de livros e roteiros da escritora e de seu marido John Gregory Dunne

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Jennifer Schuessler
The New York Times

O mês era abril de 1957, e Joan Didion estava escrevendo uma carta à sua família na Califórnia sobre seu emprego como redatora na revista Vogue. "O trabalho é monótono e enfadonho", ela escreveu, acrescentando, "mal posso esperar para pedir demissão".

Didion, que na época tinha 22 anos e havia se formado há menos de um ano na Universidade da Califórnia em Berkeley, também escreveu sobre o que achava de um livro que tinha lido recentemente, e lamentou o conformismo das pessoas de sua faixa de idade. "Tudo que as pessoas dessa geração querem é segurança e pertencer ao grupo", ela escreveu. "E o que vai acontecer com o mundo se ninguém estiver disposto a arriscar essa segurança para realizar grandes coisas?"

Dentro do envelope, Didion colocou um recorte de revista que mostrava o "vestidinho preto" que tinha comprado recentemente, e que tinha feito "sucesso esmagador".

joan didion com os braços cruzados e um cigarro
A escritora Joan Didion, uma das precursoras do jornalismo literário no mundo - Julian Wasser

"Fica ligeiramente diferente em mim, porque é um pouquinho apertado para mim, o que explica completamente o seu sucesso", ela escreveu.

Quando Didion morreu, em 2021, aos 87 anos, a notícia desencadeou uma efusão de tributos a uma escritora que combinava percepção aguçada e uma voz pessoal idiossincrática, e transcendeu a fama literária comum para se tornar um símbolo de elegância nas duas costas dos Estados Unidos e, com o marido John Gregory Dunne, em um ideal de parceria intelectual e conjugal.

Agora, a Biblioteca Pública de Nova York adquiriu os arquivos literários pessoais combinados de Didion e Dunne. Na quinta-feira, a direção da biblioteca aprovou a compra de um grande acervo de cartas, fotografias, manuscritos, registros familiares e outros materiais que acompanham o trabalho individual e colaborativo de um dos casais literários mais produtivos e glamourosos dos Estados Unidos no pós-guerra.

O arquivo, que abarca um total de 76 metros lineares de material, abrange toda a vida da Didion, começando de seu nascimento em Sacramento, na Califórnia, em 1934, representado por um registro hospitalar que mostra a impressão digital do polegar da sua mãe, juntamente com a impressão da pegada de Joan como bebê recém-nascida.

Há arquivos de pesquisa para seus ensaios clássicos das décadas de 1960 e 1970 coligidos em "O Álbum Branco" e "Rastejando Até Belém", bem como notas e rascunhos para "O Ano do Pensamento Mágico" e "Noites Azuis", seu livro de memórias sobre a morte do seu marido e filha. A coleção inclui também rascunhos dos 26 roteiros em que Didion e Dunne trabalharam juntos —entre os quais "Os Viciados" e a versão de 1976 de "Nasce Uma Estrela"—, além de manuscritos e anotações dos livros de Dunne.

Não, a coleção não inclui nenhum dos óculos escuros que eram a assinatura visual de Didion —um par dos quais atingiu um preço de US$ 27 mil em um leilão no ano passado. Mas inclui agendas de compromissos, livros de receitas caseiros, cardápios e listas de convidados para jantares, e outros artigos que indicam o largo círculo de amigos que o casal mantinha em Nova York, Hollywood e mais além.

O arquivo "captura muito que é mais importante e sério nas carreiras deles", disse Julie Golia, diretora associada da biblioteca para manuscritos, arquivos e livros raros. "Mas é também profundamente pessoal".

A biblioteca —que também abriga os papéis de amigos do casal como Tom Wolfe e Jean Stein, e o arquivo da revista The New York Review of Books, que por muito tempo serviu como lar literário para Didion e Dunne— poderia parecer o destino óbvio para os textos dos dois. Ainda assim, quando Golia e Declan Kiely, o diretor de coleções e exposições especiais da biblioteca, viram pela primeira vez o inventário —preparado pela negociante Marsha Malinowski—, não tinham certeza do que encontrariam.

Os manuscritos dos primeiros nove livros de Didion, do romance "Run River", de 1963, à coletânea de ensaios "After Henry", de 1992, já tinham sido entregues à Universidade da Califórnia em Berkeley, onde Didion os colocou quando ela e Dunne se mudaram para Nova York em 1988.

Mas quando Golia e Kiely fizeram a primeira de três visitas às instalações de armazenamento onde o restante dos arquivos de Didion e Dunne estavam guardados, ficaram espantados diante da profundidade e volume da coleção, e do aspecto muito pessoal de boa parte do material.

"Ficamos de queixo caído", disse Kiely.

As primeiras visitas deles coincidiram com um leilão, no ano passado, de objetos pessoais de Didion, cujos preços de venda muito elevados —um conjunto de cadernos em branco foi arrematado por US$ 9 mil, cerca de R$ 46 mil, e panelas e frigideiras manchadas saíram por US$ 10,5 mil, cerca de R$ 53 mil– causaram espanto aos dois. Kiely disse que o leilão, que angariou um total de US$ 1,9 milhão, cerca de R$ 9,7 milhões, para caridade, não afetou o preço pago pelo arquivo dos escritores, um valor que a biblioteca não vai revelar.

O leilão, acrescentou Kiely, "nos diz muito sobre o grande carinho que existe por Joan Didion —não só pelo seu trabalho, mas também por alguma coisa em sua personalidade como escritora, que as pessoas tanto acham fascinante quanto procuram imitar".

E o arquivo, disse Golia, reflete a percepção cultivada que Didion tinha sobre a maneira pela qual se apresentava.

"Quando se trata de mulheres escritoras, elas precisam gerir tanto seu talento literário quanto sua imagem", ela disse. "Didion era notavelmente talentosa para as duas coisas. Sabia exatamente o que fazia."

O arquivo, disse Golia, não inclui diários pessoais. Mas oferece um rico veio de correspondência pessoal, incluindo tanto cartas de família —mais de 140 delas, dos anos de faculdade e de trabalho de Didion na Vogue— quanto correspondência com o vasto círculo de amigos e colegas do casal, entre eles Richard Avedon, Helen Gurley Brown, Michael Crichton, Nora Ephron, Allen Ginsberg, Lillian Hellman, Diane Keaton, o juiz [da Suprema Corte] Anthony Kennedy, Norman Lear, Jacqueline Onassis, Philip Roth e Charles Schulz.

Há uma correspondência "tocante", disse Golia, com John Wayne —sobre quem Didion escreveu, em 1965, o ensaio "John Wayne: Uma Canção de Amor"—, e cartas de Tennessee Williams, que incluem uma colagem feita com flores secas e dedicada por ele a Didion em 1973.

Williams "foi alguém que reconheceu imediatamente o brilhantismo de Didion, ficou muito encantado com ela e se tornou bastante próximo", disse Kiely.

Os 2,6 metros lineares de material em posse da Universidade da Califórnia em Berkeley talvez incluam a maior parte dos manuscritos de Didion. Mas o ponto verdadeiramente forte da coleção muito maior que será transferida à Biblioteca Pública de Nova York "é a porção do iceberg que está abaixo da superfície —os materiais de pesquisa", disse Golia. "Ela tinha materiais de pesquisa incrivelmente robustos para cada projeto."

Há um arquivo intitulado "Haight Ashbury 1967" —tema de "Slouching Towards Bethlehem", um dos ensaios clássicos de Didion. Há anotações sobre as entrevistas de Didion na prisão com Linda Kasabian, uma antiga seguidora de Charles Manson, sobre quem ela escreveu em seu ensaio "The White Album", que começava pela famosa frase "contamos histórias a nós mesmos para viver". Didion comprou o vestido que Kasabian usou em seu primeiro dia no banco de testemunhas, durante o julgamento pelo assassinato da atriz Sharon Tate.

A coleção também inclui cópias, contendo anotações de Didion, das confissões feitas pelos cinco jovens condenados pelo ataque a uma corredora no Central Park de Nova York em 1989 —confissões que mais tarde ficou provado que eram falsas. O ensaio de Didion sobre o caso para a The New York Review of Books, em 1991, foi presciente em termos das dúvidas que suscitou. "O questionamento dela sobre as confissões fica praticamente evidente nas páginas anotadas", disse Golia.

E há material para projetos não realizados, como um texto relativo a Israel e o Oriente Médio, que Didion começou em 2014 mas abandonou, disse Golia.

Dunne surge no arquivo pela primeira vez por volta de 1964, o ano em que eles se casaram.

Há manuscritos e outros materiais relacionados à sua dúzia de livros, entre os quais o romance best seller "Confissões Verdadeiras", de 1977, e "Monster: Living off the Big Screen", em que ele relata os oito anos —e 27 rascunhos— de trabalho do casal no filme "Íntimo e Pessoal".

O arquivo inclui também as extensas pesquisas para os projetos jornalísticos de Dunne, incluindo cartas que ele trocou com o assassino condenado de Brandon Teena, sobre quem Dunne escreveu um artigo em 1997 para a revista The New Yorker; o texto se tornaria a base do roteiro do filme "Meninos Não Choram". Quase todas as cartas do assassino, disse Golia, "mencionam que ele estava lendo um livro de Didion".

Embora a coleção não inclua diários, ela contém as agendas de compromissos de Didion, que mostram registros detalhados de encontros, compromissos sociais e viagens de pesquisa, bem como semanas inteiras em que Didion —que escreveu sobre suas enxaquecas em "In Bed", um ensaio de 1968— cancelava todos os seus compromissos, acrescentando como explicação o termo "dor de cabeça".

E aqueles famosos jantares?

"A abordagem dela quanto ao planejamento de jantares era simultaneamente poética e militar", disse Golia. "Fica bem claro que os jantares deviam ser uma experiência. Ela operava como curadora dessa experiência." Quanto à culinária, Golia disse, "a primeira coisa em que reparei foi que ela era muito fiel ao chantilly".

O arquivo inclui cartas de condolências que Didion recebeu após a morte de Dunne, em 2003, e de sua filha, Quintana Roo, dois anos mais tarde. E há também uma cópia de "O Ano do Pensamento Mágico" que a escritora carregou com ela em sua viagem de divulgação do livro, com trechos marcados com cartões de visitas de Dunne —e contendo anotações de revisão para futuras edições, em alguns pontos, de acordo com Golia.

Kiely disse que o processamento dos papéis deve ser concluído até o começo de 2025, e que depois disso a coleção estará aberta sem quaisquer restrições para estudiosos, biógrafos e —como praticamente todas as coleções da biblioteca— a qualquer outra pessoa registrada como usuária da instituição.

A biblioteca antecipa que a coleção venha a se tornar uma de suas mais utilizadas. "Estamos os dois ansiosos para que ela esteja acessível", disse Kiely, com uma risada, "e também um pouco receosos".

Tradução Paulo Migliacci

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