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Coreana homofóbica e obcecada lida com filha lésbica em romance hábil

'Sobre Minha Filha', de Kim Hye-jin, mostra ser possível empatizar com alguém cujas opiniões se abominam

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Lívia Prado

Historiadora e tradutora, tem mestrado em estudos latino-americanos

Sobre Minha Filha

  • Preço R$ 64,90 (144 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Kim Hye-Jin
  • Editora Fósforo
  • Tradução Hyo Jeong Sung

Todas as casas deste mundo se valorizam, menos a sua. Todas as filhas deste mundo encontram um bom homem, casam-se e têm filhos, menos a sua. É desse ponto de vista encurralado que fala a protagonista de "Sobre Minha Filha", primeiro romance da premiada escritora sul-coreana Kim Hye-jin publicado no Brasil pela editora Fósforo.

desenho de mulheres coreanas de cara fechada, uma de costas para a outra
Ilustração de Susa Monteiro para capa do livro 'Sobre Minha Filha', da Fósforo - Divulgação

Nele, uma cuidadora de idosos sexagenária tem de questionar seus valores quando, por necessidade financeira, a filha se muda para sua casa com a namorada. A filha está há sete anos nessa relação e é professora horista numa universidade. Aos olhos da mãe está, respectivamente, solteira e desempregada.

Envelhecimento, medo da morte, intolerância. Talvez por encarnar inquietações universais, a narradora não é nomeada. Tampouco se sabe o nome verdadeiro da filha. A namorada, na boca da sogra contrafeita, é "aquela menina". A mulher do professor universitário. A cuidadora novata. Este é um romance sem nomes nem homens.

A falta de nomes parece espelhar a recusa da protagonista em nomear a realidade. Ao ouvir a palavra "homossexuais" da própria nora, reage com um insólito "minha filha não tem nada a ver com essas pessoas". Também se ressente da falta de homens em seu convívio. Viúva, divide seu afeto entre a filha e Zen, uma ex-ativista dos direitos humanos que está sob seus cuidados.

Embora também a recrimine por não ter tido filhos que se encarregassem dela na velhice, a protagonista tem com a idosa Zen a compaixão que nega à filha. Desvela-se em cuidados com a paciente que, em regressão, a chama de "mãe". Significativamente, as profissões das mulheres do livro são extensões do cuidado da família: professora, cozinheira, defensora de crianças refugiadas.

No rol de decepções que a protagonista atribui à filha, a sexualidade se mistura a mudanças na vida social da classe média sul-coreana. Todas elas —a deterioração da moradia, das condições de vida e do mercado de trabalho— parecem se revelar nos corpos das personagens. O da filha carrega as marcas da violência homofóbica; o da mãe se verga sob o peso do trabalho braçal; o de Zen se faz cada vez mais abjeto.

Como seria esperado, a convivência forçada opera mudanças na protagonista. Vendo a filha lutar contra a homofobia na universidade, toma pé para questionar o trato desumano na clínica onde trabalha. Mas esta não é uma história de redenção. Em vez disso, Hye-jin dá mostras de refinamento literário ao descrever o embate irresolúvel entre desejo de mudança e convicções arraigadas.

Ainda que o choque geracional não se dilua magicamente, mãe e filha se afetam quando buscam, em paralelo, justiça em seus locais de trabalho. A mesma protagonista que no início do romance reconhece ter construído ao redor de si "um muro alto chamado família" se pergunta, no final, "o que importa ser da família ou não?".

mulher de feições orientais de camisa escura e manga arregaçada
A escritora sul-coreana Kim Hye-jin, autora de 'Sobre Minha Filha' - Divulgação

Cru e cruel, o relato em primeira pessoa está condicionado pelas obsessões da narradora. As demais personagens existem tangencialmente, segundo a função que desempenham em seu universo. No entanto, ganham corpo graças às imagens capciosamente contrabandeadas pelas frestas do monólogo interior da protagonista.

Essa visão de túnel da narradora faz com que, muitas vezes, informação crucial seja postergada. O recurso exige paciência do leitor, que tem de armar um quebra-cabeça com peças vistas de perto demais. Em mãos menos hábeis, o resultado seria moroso.

No entanto, a capacidade de Hye-jin de pintar um perfil psicológico nuançado da protagonista, que exaspera e comove em doses iguais, recompensa o leitor que aceita o desafio. Com sensibilidade, mostra ser possível empatizar com alguém cujas opiniões se abominam.

Na base da cadeia alimentar urbana, as mulheres de Hye-jin se apoiam umas às outras, ainda que relutantes. Nesse processo, dilatam os domínios do muro chamado família. Inconclusas no livro, suas pelejas ressoam na caixa acústica do real.

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