Descrição de chapéu

Sérgio Abreu encontrou no violão a essência do som, de artista a artesão

Seja de músico ou como luthier, músico do Duo Abreu completava o mundo com inteligência, refinamento e bondade

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São Paulo

Em uma passagem do arranjo para quatro violões feito por Sérgio Abreu (1948-2023) das "Bachianas Brasileiras n.1" de Villa-Lobos —obra original para octeto de violoncelos—, a sensação de movimento, de tensão sobre notas prolongadas, típica dos cellos, parece milagrosamente permanecer nos violões, instrumentos de ataque súbito e decaimento rápido.

Sérgio Rebello Abreu, violonista e luthier brasileiro durante entrevista ao GuitarCoop em 2016 - GuitarCoop no YouTube

Na partitura vê-se, entretanto, que, emergindo de uma voz intermediária, uma melodia aparentemente dispensável, inexistente no original, produz a sensação exata que a passagem exige: Abreu transcria Villa-Lobos, comenta-o sem se apegar a literalidades.

A morte do luthier, violonista e arranjador carioca, nesta quinta-feira (19/1), aos 74 anos, surpreendeu o mundo do violão clássico brasileiro, com repercussões nacionais e internacionais, e inaugurou uma série —ininterrupta até aqui— de depoimentos e homenagens em postagens nas redes sociais de violonistas.

Cultuado por especialistas (ao lado do irmão, Eduardo, um ano mais jovem) como membro de um histórico duo de violões, Sérgio teve uma prodigiosa carreira de instrumentista antes de se dedicar de corpo e alma à construção de violões, atividade que o levou a assinar mais de 700 instrumentos artesanais.

Lançados em 1968 (quando Sérgio tinha 20 anos e Eduardo 19), 1969 e 1970 por selos internacionais prestigiosos como Decca e CBS, os LPs do Duo Abreu realizavam uma estranha e assustadora simbiose entre juventude e sabedoria. A técnica imaculada se colocava a serviço da coerência estilística, e nunca se esgotava na mera reprodução do texto escrito: são interpretações fortes, inteligentes, de quem sabe exatamente o que quer atingir e como fazê-lo.

Razões contratuais impediram que os discos fossem relançados, até o presente momento, em CD ou streaming, mas sua reprodução ao longo dos tempos por admiradores, estudantes e colecionadores acompanhou, informalmente todas as mudanças tecnológicas.

Esse ciclo foi rompido apenas em 2018 com o lançamento em CD, pelo selo brasileiro Guitarcoop, do histórico recital ao vivo do Duo Abreu transmitido em 1970 pela BBC de Londres, talvez o (até então) mais célebre álbum "não lançado" da história do violão. A escuta dos irmãos-prodígios tocando os arranjos de Sérgio para peças do barroco francês (como as 6 peças originais para cravo de Jean-Philippe Rameau) conduz o ouvinte a um estado hipnótico, de silêncio arrebatador.

O mesmo ocorre no único álbum solo de lançado por Sérgio Abreu, no início dos anos 1980, contendo uma sonata de Paganini e nove estudos do compositor catalão Fernando Sor (1778-1839).

Ao encerrar no auge e precocemente (com pouco mais de 30 anos) a carreira de concertista internacional, Abreu começou a se dedicar a luteria. Seus instrumentos autorais tomaram como referência os violões que ele mesmo utilizava em concertos e gravações, especialmente um violão construído pelo alemão Hermann Hauser (1882-1952) em 1930, sete anos mais antigo do que o histórico instrumento do violonista espanhol Andrés Segovia (1893-1987), o qual hoje integra o acervo do Metropolitan Museum de Nova York.

Os violões Abreu são instrumentos tradicionais, que utilizam tampo de pinho europeu e, em geral, laterais e fundo de jacarandá. Sua qualidade sonora é exemplar, doce e robusta, e igualmente notável é o potencial para sustentar o contraponto, isto é, as linhas independentes, tocadas em simultâneo, que não perdem individualidade e generosamente se mesclam no todo sonoro.

Instrumentos Abreu recompensam quem muita estuda, como ele sempre fez. Estão além de uma facilidade superficial: solicitam o trabalho diário, mas daí viram parceiros, amigos que ajudam a penetrar as obras, revelando humor, senso lúdico, um mundo de cores, permitindo à interpretação ser um jogo bonito e divertido.

Tudo isso —humor, cores, diversão— pode mesmo estar no som de um violão. Em seu trabalho de artista-artesão, realizado solitariamente consigo mesmo nas madrugadas cariocas —tão perto e tão longe da praia—, bem como na própria vida, Sérgio Abreu completava o mundo com o que nele faltasse de inteligência, refinamento e bondade.

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