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Teté Ribeiro

Madonna mostrou o que é ser uma 'velha ridícula' na noite do Grammy

Diva pode ter sido vista como narcisista ignorante, provocadora brilhante, vítima de dismorfia facial ou apenas monstruosa

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Aos 64 anos de idade, 40 de profissão, sete Grammy, dois Globos de Ouro, 21 VMAs, infinitos prêmios Billboard e 19 recordes mundiais, Madonna entrou no palco da Crypto.com Arena, em Los Angeles, no último dia 5, fazendo uma pergunta ao público: "vocês estão prontos para a controvérsia?".

Emendou o pensamento se dirigindo a "todos os perturbadores", e garantindo que "sua coragem não passa despercebida, vocês estão sendo ouvidos e apreciados". Então chamou a dupla Sam Smith e Kim Petras, que apresentaram a música "Unholy".

Madonna no Grammy - Frazer Harrison/Getty Images via AFP

Sam Smith tem 30 anos e é uma pessoa britânica não-binária. Kim Petras, também de 30 anos, é uma mulher trans alemã, que entrou para a história do Grammy no último domingo quando se tornou a primeira cantora transgênero a ganhar o prêmio na categoria melhor performance de duo/grupo. Mas quase ninguém se lembra ou sequer chegou a prestar atenção nesse fato.

O rosto inchado de Madonna, assim como o tapa que Will Smith deu na cara de Chris Rock no Oscar do ano passado, foi como uma nuvem tóxica que cobre tudo. Dá a impressão de que ninguém viu mais nada, ouviu mais nada depois disso. O que importava era achar o adjetivo perfeito para etiquetar na testa brilhante e esticada da cantora.

Em pouco mais de cinco meses, Madonna dará início a uma turnê mundial para celebrar sua carreira até aqui. São quatro décadas de hits. O Brasil não está na agenda, que tem shows marcados na América do Norte e na Europa do meio de julho até o começo de dezembro.

O mundo de 1983, quando Madonna lançou o primeiro disco, era muito diferente do mundo do último domingo. E ficou diferente em parte por causa dela.

Serão cinco meses de muitos ensaios, muita produção, muitas decisões. Além de escolher e ensaiar as músicas que vai apresentar, Madonna vai pensar em novos arranjos, figurinos, luzes e cenários, cabelos e, óbvio, rosto. Muito provavelmente, ela já começou a fazer procedimentos estéticos projetados para deixá-la com o rosto que ela pretende estar no dia 15 de julho, quando faz sua primeira apresentação, em Vancouver, no Canadá.

Ela podia muito bem desaparecer da mídia nesse período e surgir, plena, só no primeiro show de sua turnê. Como faziam antigamente as mulheres da elite que optavam por uma repuxada geral na pele. Desapareciam e surgiam remoçadas. A dúvida do que —e se— tinham feito alguma coisa fazia parte do pacote, como se o mistério da feminilidade adicionasse um valor extra às mulheres. Ou, pelo menos, elas pensavam isso.

Na verdade, faz milhares de anos que as mulheres são atormentadas pela ideia de que precisam cuidar da aparência de maneira imperceptível, privada, ninguém pode saber. E se submetem a verdadeiras torturas cotidianas —e aqui entram de sapatos de salto alto a sutiãs com uma barra de metal para levantar os seios, passando por roupas de baixo que apertam o corpo para afinar a silhueta (e fazem de Kim Kardashian uma bilionária no processo).

E o que dizer dos banhos de leite de jumenta de Cleópatra? Ou da mistura de chumbo e vinagre que a rainha Elizabeth 1ª usava no rosto?

A indústria cosmética vive e prospera por conta dos produtos criados para disfarçar os efeitos do envelhecimento. Cremes para rugas, contra celulite, para manter o pescoço lisinho, corretivo para sumir com as olheiras, rímel para cobrir falhas na sobrancelha. Do produto mais assimilado e socialmente aceitável –a tinta de cabelo– aos procedimentos mais polêmicos, como o rejuvenescimento íntimo (o que quer que seja isso), parece que vale tudo, desde que ninguém saiba.

Mas ela não é uma mulher qualquer, muito menos uma que pede desculpas ou dá explicações. Se quisesse, podia simplesmente não ter ido ao Grammy. Ela foi convidada para dar o prêmio principal da noite, o de melhor disco do ano.

A aposta da indústria era que Beyoncé sairia vencedora, quebraria o recorde de Grammy para uma artista solo (o que aconteceu de fato) e receberia o último troféu da noite das mãos de outra diva. Como uma cerimônia de coroação. Só que, na curiosa monarquia da música pop, várias rainhas podem existir ao mesmo tempo.

Madonna não aceitou, preferiu apresentar a dupla mais polêmica e transgressora da cerimônia, Sam Smith e Kim Petras (ainda lembra os nomes?). Assim foi feito. Claro que ela aproveitou o palco para lembrar o público da turnê que inicia em julho com o melhor de sua obra até aqui. E, para provar que não tinha motivo algum para se envergonhar de sua aparência, apareceu ao vivo enquanto um telão no fundo do palco exibia fotos de diferentes épocas de sua carreira.

Madonna já foi loira, já foi morena, ultrafeminina e ultramasculinizada, vestiu jeans rasgados e sutiãs de alças frouxas que apareciam por baixo da camiseta e alta-costura em bailes de gala. Ensinou muita gente a fazer sexo oral no documentário "Na Cama Com Madonna", de 1991. Já mudou até o jeito de falar, adotando um sotaque britânico nos anos em que morou na Inglaterra, casada com Guy Ritchie. Nessa época, aliás, tal qual uma personagem de "Downton Abbey" transportada para os anos 2000, aprendeu a cavalgar e criou galinhas como pets.

Mas, então, atingiu aquela fase na vida de qualquer mulher em que ser ridicularizada é a única opção para quem não aceita se tornar invisível e irrelevante. Foi assim com a cantora Courtney Love, viúva de Kurt Cobain, que abriu mão de seu look roqueira punk quando a pele do rosto começou a mudar de textura e decidiu que queria ter cara de mulher chique. Outra Courteney, a Cox, de "Friends", também passou pelo purgatório estético. Nicole Kidman, Melanie Griffith, Goldie Hawn, Fergie, Donatella Versace foram outras que mergulharam nas agulhas.

As irmãs Kardashian/Jenner são de outro time, o mesmo de Megan Fox e da nossa Anitta, mulheres mais jovens, precoces para esse tipo de neurose e assunto para outra hora.

Renée Zellweger foi idolatrada por ter engordado horrores para o filme "O Diário de Bridget Jones", de 2001, e depois emagrecido rapidamente, como uma boa menina. Tinha 32 anos na época. Mas, perto dos 45, fez algum ou alguns procedimentos estéticos no rosto que não foi capaz de disfarçar, e foi tão massacrada publicamente que desistiu de ser atriz. Ficou dez anos afastada de Hollywood, até que decidiu voltar para interpretar Judy Garland em "Judy", de 2019, pelo qual venceu o segundo Oscar de sua carreira.

Aconteceu até com a francesa Brigitte Bardot, um dos maiores símbolos sexuais da história do cinema, que renunciou à carreira no começo dos anos 70, quando estava prestes a fazer 40 anos, para "sair de cena elegantemente", ou seja, antes de virar uma velha ridícula.

Tornou-se ativista pelos direitos dos animais e, até onde se sabe, nunca mencionou a palavra botox. Nem maquiagem ela usa. Sua aparência descuidada e decadente foi notícia várias vezes desde que desistiu de ser atriz. Agora, aos 88 anos, acumula polêmicas com declarações homofóbicas e contra o que chama de islamização da França, tema pelo qual já foi processada e condenada diversas vezes. Mas está livre do julgamento estético, que costuma acompanhar toda a vida adulta das mulheres.

Outra francesa chamada Brigitte foi bastante julgada recentemente por sua idade e aparência, consideradas inadequadas para ser casada com o homem que ama, o presidente da França, Emmanuel Macron, 24 anos mais jovem que ela.

A era das "velhas ridículas" parece durar cerca de três décadas na vida das mulheres. Vai da hora em que o universo percebe intuitivamente que seus hormônios terminaram, o que costuma acontecer perto dos 50 anos, até que ela fique oficialmente velha, entre os 70 e 80 anos.

Aí, tem dois caminhos possíveis (para quem continua viva): um é o desaparecimento total e completo. O outro é virar uma velha louca, uma diva exagerada, que pode ser ultravaidosa ou fofinha, sábia ou desbocada, ou tudo ao mesmo tempo. Pode ser uma Dercy Gonçalves ou uma Iris Apfel. Que todo mundo ama, acha graça, dá desconto pelos foras.

Mas Madonna não é do tipo que aceita os caminhos já traçados. E, para ela, existir é um ato de resistência. Que não vai acontecer na inércia, ou como Deus quiser. Vai ser do jeito dela.

O rosto da cantora estava desfigurado na noite do Grammy. E aposto como ela tem espelho em casa. Madonna, além de muito inteligente, é bem rica e muito bem assessorada. Se quisesse, podia não ir ao prêmio. Ou podia fazer um penteado que disfarçasse as bochechas infladas e a testa estirada. Mas não. Ela optou por realçar o rosto, como se quisesse esfregar na cara do público que é assim que uma mulher de 64 anos fica cinco meses antes de aparecer linda, como eu teorizo (ou torço) que vá acontecer no show de estreia de sua turnê.

Com duas tranças fininhas soltas na frente e outras duas mais grossas, presas em forma de argola sobre suas orelhas, as sobrancelhas descoloridas, cílios postiços e rímel preto, batom cor de boca. O figurino era uma saia preta longa, com uma fenda alta que exibia a perna torneada com meia-calça estilo arrastão, sandália com salto plataforma azul, blazer preto ajustado na cintura e aberto sobre o quadril, camisa branca, gravata preta e um chicotinho de montaria na mão.

Ou seja, era tudo neutro, menos a cara. Porque é assim que se faz uma revolução nos costumes. Dando a cara a tapa, como ela sempre fez.

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