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Novo Houellebecq traça aniquilação de um homem e da sociedade

'Aniquilar' é sobre entropia da vida, tédio da existência, inexorabilidade da morte, mas traz esperança, elemento inédito

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Alex Castro

Michel Houellebecq não é um grande estilista da língua, não elabora enredos envolventes, não cria personagens memoráveis. Seu grande mérito está em ser um cronista irônico, uma testemunha rigorosa, um profeta inclemente.

Nos séculos futuros, quando as pessoas quiserem conhecer nossa época, seus conflitos e seus ressentimentos, entender o fenômeno incel e o brexit, os atentados terroristas e Trump, será Houellebecq que vão procurar.

A precisão de sua sensibilidade profética é assombrosa. Em seu primeiro romance, "Extensão do Domínio da Luta", de 1994, previu a ascensão dos incels. Depois, "Plataforma", de 2001, sobre colonialismo e terrorismo, prostituição e turismo sexual, antecipou os atentados de Bali, na Indonésia, no ano seguinte.

Cena do curta-metragem pornô com o escritor francês Michel Houellebecq feito pelo coletivo holandês Kirac - Reprodução/Kirac

"Submissão" mostrou um muçulmano chegando ao poder na França e saiu na mesma semana do atentado ao jornal Charlie Hebdo, em 2015; e "Serotonina", sobre agricultura e protecionismo, União Europeia e brexit foi lançado em 2019 na semana em que os coletes amarelos bloquearam as estradas do país.

Seus romances mais geniais, porém, são os mais ambiciosos. "As Partículas Elementares" e "A Possibilidade de uma Ilha" profetizam a falência da civilização ocidental em escala cósmica e implacável.

"Aniquilar", seu novo romance, que sai agora no Brasil pela Alfaguara, é sobre a entropia da vida, o tédio da existência, a inexorabilidade da morte; desta vez acompanhados por um elemento inédito em sua obra, a esperança.

O romance começa em meio a uma série de atentados que ameaçam a economia global. Um dos funcionários do governo francês envolvidos na caça aos terroristas é Paul Raison, mais um em uma longa série de protagonistas homens brancos héteros de meia-idade, ressentidos e apáticos, racistas e misóginos, mas com uma grande e surpreendente diferença —não ser uma pessoa abertamente detestável, quase a única exceção na obra de Houellebecq.

Quando seu pai sofre um AVC, acompanhamos Paul e sua família lidando com as consequências da doença.

De todos os romances de Houellebecq, "Aniquilar" é o mais longo e o mais tedioso. Cada assunto, desde cuidados paliativos na saúde pública até novas terapias contra o câncer, é dissecado com uma profundidade desesperadora. Mas talvez seja esse o objetivo.

Quando um grande artista da palavra, no auge de seus poderes criativos, decide propositalmente nos entediar e exasperar, algo ele está nos comunicando. A questão não é se "Moby Dick" tem ou não trechos tediosos, mas sim por que Melville nos impôs tanto tédio.

Ao final da leitura, o leitor percebe que "Aniquilar" era menos thriller político (os atentados terroristas nunca são resolvidos) e mais uma versão estendida de "A Morte de Ivan Illich", em que o autor, não satisfeito em narrar só os últimos dias do protagonista, mostrou também seu último ano de vida antes do diagnóstico.

Tanto Tolstói quanto Houellebecq nos ensinam a morrer e, em consequência, a viver, mas a diferença é que Tolstói está narrando a morte de um só homem, enquanto Houellebecq, intimista e cósmico, está fazendo o réquiem de toda uma civilização que vai sendo aniquilada junto com Paul e sua família.

"Aniquilar" é seu livro mais sensível e otimista, porque é o único em que Houllebecq nos oferece uma esperança redentora —o amor. O futuro é a aniquilação. O presente nada mais é do que esse lento e contínuo processo de aniquilamento, seja do sistema econômico global, por terroristas, seja do corpo de Paul Raison, por um câncer.

E a vida, bem, a vida são os amores que conseguimos roubar ao tempo. Em retrospecto, o mérito do enredo secundário sobre os terroristas está em ser abandonado —a vida não são essas grandes aventuras e sim cuidar do pai idoso, se reaproximar da mulher afastada, se apaixonar por uma pessoa nova.

Piegas? Certamente. O autor se casou pela terceira vez há cinco anos e "Aniquilar" parece obra de um homem feliz. Se mantiver sua palavra, será seu "Memorial de Aires", o último livro de um autor irônico, genial e impiedoso, agora mais doce e amolecido pela idade. Não seria uma má despedida.

Aniquilar

  • Preço R$99,90 (480 págs); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Michel Houellebecq
  • Editora Alfaguara
  • Tradução Ari Roitman
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