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'Confiança' discute a arte capitalista de torcer e de reenquadrar a realidade

Hernan Diaz usa múltiplos pontos de vista para se embrenhar no mundo especulativo da quebra da Bolsa de Nova York

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Vanessa Oliveira

Jornalista, doutora em ciências sociais e professora de jornalismo das universidades Mackenzie e PUC, em São Paulo

Confiança

  • Preço R$ 89,90 (416 págs.); R$ 62,90 (ebook)
  • Autoria Hernan Diaz
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Marcello Lino

Há quase 40 anos os sociólogos Monique Pinçon e Michel Pinçon esmiuçaram as entranhas da burguesia francesa —sua coesão de classe, a ausência de culpa, o racismo, a construção de "guetos", onde infindáveis autocongratulações se convertem em violência sistêmica contra o restante da sociedade.

É um trabalho louvável em sua raridade. Porque, apesar de fundamentais para a compreensão do poder, mergulhos profundos na intimidade dos super-ricos são negligenciados até pela academia progressista, mais atraída pela denúncia da pobreza que pelo descortinamento da riqueza, o que acaba colaborando ao cultivo de sua própria mitologia, seu bem mais precioso.

Prédio na 70 Pine Street, em Nova York
Prédio na 70 Pine Street, em Nova York - Irving Underhill

Esse é o teto de vidro que o autor argentino Hernan Diaz, radicado nos Estados Unidos, estilhaça em "Confiança", seu segundo romance. O primeiro, "In the Distance", de 2017, ainda não tem tradução brasileira, apesar de ter feito do autor finalista dos prêmios Pulitzer e PEN/Faulkner.

O pano de fundo é a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. Seus personagens, os grandes articuladores dos mecanismos financeiros que levaram ao crash –daí o título polissêmico "Trust" que, se no original, remete tanto às finanças quanto à moral, em português, perde parte de sua força poética.

São quatro livros num só —um romance na fronteira entre ficção e realidade; o manuscrito petulante e autocondescente de um super-rico; memórias críticas do mesmo personagem e, por fim certo mistério, para evitar spoilers.

No primeiro livro, o escritor fictício Harold Vanner narra duas biografias, a do recluso herdeiro Benjamin, convertido em especulador depois de abandonar o negócio familiar de tabaco; e da brilhante Helen, filha de uma família burguesa falida, que se torna uma mecenas discreta e generosa, depois de se casar com Benjamin.

Na trama, a revista The Atlantic dedica uma crítica a Vanner que caberia ao próprio Díaz. "Nosso cânone está saturado de histórias sobre classe e consumo conspícuo, sobre os modos engessados ou as excentricidades desenfreadas que acompanham a riqueza. As narrativas que tentam criticar a riqueza e a desigualdade quase sempre acabam se deslumbrando pela ganância ostentadora que se propõem desmistificar –uma armadilha que o senhor Vanner evita com destreza."

Um dos mais inspirados caminhos de Díaz para evitar a armadilha do deslumbre é a segunda história, que ele próprio definiu como maior desafio do romance —escrever pelas mãos de Andrew Bevel, um milionário que se sente injustiçado por acreditar que sua ganância foi, na verdade, grande responsável pela evolução da nação.

E pior, num texto medíocre, imerso em um contexto de vulgaridade ostensiva já que, à época, Donald Trump estava no poder. O resultado, graças à profunda ironia inerente à empreitada, é surpreendentemente saboroso.

E prepara o terreno para a terceira voz, da jovem filha de um imigrante italiano anarquista, que se torna ghostwriter do autor precedente. Cabe a ela expor a forma como Bevel infla sua importância, enquanto inventa uma personalidade morna para a mulher. A última história amarra magistralmente todas as outras.

E, nesse mosaico, Díaz desnuda como os grandes indutores e beneficiários das crises endêmicas do capitalismo se valem do poder econômico para converter seu saldo de terra arrasada em histórias de sucesso pessoal e familiar, ocultando os cadáveres da acumulação primitiva —escravidão, genocídios, pobreza, fome et cetera.

Não bastasse toda a complexidade crítica e literária, Díaz ainda se impõe o desafio da paridade de gênero, incomodado com a obscena exclusão das mulheres nas narrativas sobre impérios financeiros e seus "Grandes Homens" –uma escolha ideológica para alimentar o mito masculino do triunfo.

Por fim, o livro não exige um MBA em finanças, como alguns podem pensar. É fácil e fluido porque Díaz sabe que a conversa sobre economia é "propositalmente esotérica" e "desenhada para não ser entendida" e que esse hermetismo, seja da intimidade dos ricos, seja do jargão com que eles exercem o poder, é um mero mecanismo de controle.

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