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Cancelar show do Mayhem por suposto nazismo é só lacração para redes sociais

Críticos ignoram que bandas maiores e mais influentes do metal têm ligações mais diretas com racismo e com a extrema direita

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São Paulo

O Mayhem é nazista? Curioso esta questão, que levou ao cancelamento do show da banda de black metal norueguês marcado para esta quarta em Porto Alegre, só ter aparecido agora —num episódio com cheirinho moralista de censura.

Afinal, o grupo, que praticamente inventou um gênero musical mais conhecido pelos crimes com os quais esteve envolvido do que pela sonoridade, já tocou várias vezes no Brasil, inclusive em Porto Alegre, há cinco anos, sem nenhum incidente.

Além disso, o Pantera, uma banda de thrash metal com público dezenas de milhares de vezes maior do que o Mayhem e com um vocalista cancelado por fazer uma saudação nazista, fez shows abarrotados no Brasil no ano passado e passou despercebido pelas turbas do Twitter.

Fotografia colorida de vocalista em show
O vocalista Attila Csihar em show do grupo Mayhem no festival Psycho Las Vegas 2022, realizado em setembro - Justin Wholey

Segundo as personalidades que impulsionaram o cancelamento do show do Mayhem, o professor de filosofia Renato Levin-Borges e o deputado petista Leonel Radde, a banda seria nazista por causa de declarações muito antigas de seus membros sobre raça e o papel da Alemanha na Segunda Guerra.

Os canceladores também baseiam sua lógica na iconografia —uma braçadeira de suástica vestida por um dos integrantes do Mayhem há décadas e desenhos de caveiras nazistas estampados em camisetas de turnês da banda de muitos anos atrás. Mais grave, dizem, seria o fato de o conjunto nunca ter negado sua suposta filiação à ideologia de Hitler.

Surgido em meados da década de 1980, o Mayhem é um dos ícones do black metal, um tipo de música pesada reconhecida pela velocidade e crueza sonora, letras de devoção a Satanás e glorificação da morte. Mas o gênero entrou no imaginário social não pelas suas qualidades estéticas, e sim por crimes reais.

Varg Vikernes, baixista do Mayhem no início dos anos 1990 —este sim, um neonazista assumido—, matou a facadas o guitarrista da banda, Euronymus, um jovem que nutria simpatia por líderes comunistas.

Vikernes também esteve envolvido na queima de igrejas na Noruega, um passatempo de músicos de black metal na época. Por seus crimes, passou 16 anos preso e foi solto em 2009. Ele nunca mais voltou para o Mayhem.

Faust, ex-baterista do Emperor —banda de black metal que tocou para 3.000 pessoas em São Paulo no ano passado— matou a facadas um homem gay num parque onde aconteciam encontros homossexuais, em Lillehammer, na Noruega, e também foi preso.

Para ilustrar o universo do Mayhem, vale citar o episódio em que o ex-vocalista, Dead, cortou os próprios pulsos e se deu um tiro na cabeça no momento em que a banda começava a ficar mais conhecida. Sua foto morto, com os miolos estourados, virou capa de um disco do grupo.

Depois das turbulências, o Mayhem passou a viajar o mundo tocando sua música abrasiva em shows para centenas de pessoas vestidas de preto, enquanto o black metal se dissociava de seu passado maldito e abria novos caminhos sonoros ao se unir com outros gêneros musicais.

Nos shows, os membros do Mayhem, hoje na faixa dos 50 anos, vestem longas capas cobrindo o corpo e a cabeça e usam ossos para fazer uma cruz invertida, que mostram para o público. Realmente, um perigo para a sociedade.

Se o Mayhem não leva simbologia nazista para o palco, não fala disso em suas letras ou capas de disco, não estimula o ódio contra minorias, justifica rotular os membros do grupo de neonazistas resgatando uma entrevista antiga e algumas fotos velhas da banda?

O que os gaúchos talvez desconheçam é que o metal, e sobretudo o metal extremo, só funciona porque tenta, a todo momento, chocar a sociedade —não apaziguar. E talvez nada seja mais aviltante do que se associar ao nazismo.

Se era cômico, ridículo, ofensivo ou de mau gosto usar uma braçadeira de suástica na Noruega do início dos anos 1990, quando Hitler parecia coisa do passado e o neonazismo não estava na pauta da sociedade, hoje, dada a ascensão da extrema direita ao redor do mundo, isso seria criminoso em vários países.

O contexto importa muito. O que era apenas teatral há décadas não passa pelo filtro social de hoje.

A prova de que a opinião pública mudou ficou clara logo depois da eleição de Donald Trump, quando o vocalista do Pantera, Phil Anselmo, à época em carreira solo, foi jogado no ostracismo e teve muitos shows cancelados depois de fazer o cumprimento nazista e dizer "white power", ou poder aos brancos, no final de uma apresentação.

Ou seja, se alguém no passado recente da música pesada estimulou ideologia de ódio, parece claro quem é. Ao contrário do ex-baixista do Mayhem, que hoje vive isolado destilando ódio eventual no Twitter, Phil Anselmo retomou o Pantera e está excursionando o mundo em festivais de metal que reúnem dezenas de milhares de fãs.

No Brasil, o fascismo está na pauta do dia há alguns anos. Basta lembrar os recentes episódios de alunos em várias escolas do país fazendo saudações que remetem ao nazismo e do ex-presidente Jair Bolsonaro dizendo que o nazismo era de esquerda.

Ao usarem provas frágeis e fora de contexto para tentar criminalizar o Mayhem, o professor de filosofia e o deputado estão atraindo curiosos para a banda e, sobretudo, circulando nas redes sociais a iconografia nazista e as falas de teor discriminatório que julgam combater.

Fica a impressão de que há uma tentativa de lacrar nas redes às custas de uma banda que vive da glória do passado tocando para um punhado de pessoas que querem se sentir na Noruega dos anos 1990.

João Perassolo
João Perassolo

Repórter da Ilustrada

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