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Como o crescimento do streaming piorou a condição de trabalho dos roteiristas

No Brasil, autores reclamam de formas de pagamento e falta de crédito, enquanto nos Estados Unidos sindicato ameaça greve

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São Paulo

Salário fixo e benefícios. Em um mercado como o audiovisual, cheio de autônomos, ser roteirista e arranjar um emprego com carteira assinada sempre foi difícil, mas não impossível.

Por décadas, os autores com vocação para a teledramaturgia tinham sua espécie de xangri-lá —a TV Globo, onde era possível receber pagamentos generosos como funcionário fixo, sem necessariamente ter algum programa no ar, e um extra de até 50% quando se emplacava alguma ideia na telinha.

Mas isso está mudando. Em um cenário de ascensão do streaming, a emissora carioca tem deixado de renovar contratos com autores, demitindo roteiristas, contratando profissionais por projeto e provocando um choque de oferta no mercado.

A empresa diz em nota que tem tomado medidas para se preparar para o futuro e se adequar às práticas do mercado, mas afirma que não abriu mão de contratos de exclusividade. Diz ainda que o novo modelo de negócios está ligado à busca por novos talentos e mais diversidades por trás das telas.

Ilustração com grandes personagens da televisão brasileira
Ilustração com grandes personagens da televisão brasileira - Zé Vicente

As demissões na Globo fazem parte de um fenômeno maior de mudanças nas relações de trabalho no audiovisual brasileiro, que têm afetado os roteiristas de modo particular. Mesmo autores que já estavam fora do éden televisivo relatam uma piora nos modos de contratação, nas formas de pagamento e no reconhecimento de créditos, entre outros problemas.

Eles atribuem a piora aos contratos impostos pelas plataformas de streaming e dizem que o cenário foi agravado durante o governo de Jair Bolsonaro, quando os canais de financiamento para produção ficaram praticamente paralisados, o que tornou os serviços de vídeo sob demanda uma das únicas opções de sustento para muitos profissionais.

Os protestos correm à boca pequena, já que os contratos com as empresas estrangeiras têm cláusulas de confidencialidade, que podem ser violadas por uma crítica pública.

Uma das principais queixas é quanto aos pagamentos. Roteiristas reclamam de trabalhar meses em uma ideia sem receber, porque o pagamento costuma estar condicionado à aprovação final das plataformas.

Se for experiente, um autor pode receber até R$ 200 mil por um projeto. Parece muito, mas depende de quanto tempo o trabalho durar, e há reclamações sobre contratos sem prazo.

Uma roteirista e consultora de projetos com mais de dez anos de experiência diz, sob a condição de anonimato, ter ficado dois anos presa no desenvolvimento de uma série —o que, na prática, torna o valor proporcionalmente menor.

Além disso, o escopo do trabalho pode ser maior do que o combinado. Se o acertado eram três versões de roteiro para cada episódio de uma série, por exemplo, não é incomum que o processo de escrita e reescrita exija mais do que isso. Isso num cenário em que a quantidade de roteiristas no mercado com as demissões na Globo ajuda a derrubar os preços.

Outra questão é a falta de cláusulas que permitam aos autores —e também aos produtores— ter participação no sucesso de uma série ou filme para o streaming. No modelo da TV Globo, por exemplo, os criadores recebem por novas exibições, vendas de direitos ao exterior ou licenciamento de obras.

"As plataformas de streaming dominam o cenário impondo condições contratuais muito precárias para os autores, trazendo um modelo de cessão integral de todos os direitos autorais com um pagamento único", diz Paula Vergueiro, advogada da Abra, a Associação Brasileira de Autores Roteiristas.

A Abra tem defendido um modelo de gestão coletiva, como já acontece no caso da música, com o Ecad, em que os roteiristas poderiam ganhar percentuais pelas exibições, mas isso tem sido vetado nos contratos com as plataformas.

Outro ponto de discórdia diz respeito ao poder dos criadores no processo. No esquema dos streamings, é plenamente possível que o autor que deu uma ideia de uma série, por exemplo, seja escanteado do desenvolvimento e substituído por outros nomes. Isso sem falar na interferência de executivos, algo diferente do antigo esquema da Globo, com autores alçados à categoria de celebridades nacionais.

"As plataformas de streaming querem ir no certo. Você não tem mais tempo de apostar", diz Silvio de Abreu, autor de novelas como "Guerra dos Sexos" e "A Próxima Vítima", que foi diretor de dramaturgia da TV Globo até 2020 e supervisor de dramaturgia da Warner Media até o começo deste mês.

"O modelo da Globo [com autores fixos] não é mais possível. Mas, artisticamente, é um projeto extremamente interessante, apesar de não ser dos mais econômicos. Muitos autores ficavam muito tempo sem escrever."

No ano passado, quando a Abra pediu que o Ministério Público do Trabalho mediasse um diálogo das empresas com os autores, as plataformas de streaming apontaram o dedo para outro elo da cadeira —disseram que não têm contratos de trabalho com os roteiristas, porque contratam produtoras e terceirizam o trabalho.

Já os produtores se defendem, sempre nos bastidores, dizendo que os modelos de contrato são imposições das plataformas, sem margem para alterações.

O produtor Leonardo Edde, da Urca Filmes, que também é presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual, não fala sobre contratos com clientes, mas diz que é importante debater o assunto. "Vejo muito campo para trabalhar, é o momento de uma discussão transparente entre todos os agentes do mercado."

A reportagem procurou as principais plataformas estrangeiras de streaming com operações no Brasil para que elas comentassem as queixas dos roteiristas, mas as empresas preferiram não se manifestar. Em uma conversa sob a condição de anonimato, um alto executivo de uma plataforma estrangeira no Brasil diz que o streaming ainda está tentando se viabilizar como negócio.

Ele lembra que as assinaturas não são suficientes e que há discussões sobre a possibilidade de ter anúncios no streaming. O modelo de negócios, diz, flutua ao sabor do preço das ações das plataformas nas bolsas de valores —uma queda como a das ações da Netflix, no ano passado, por exemplo, acabou afetando toda a indústria.

Um levantamento da consultoria Dataxis mostra os prejuízos que conglomerados de mídia americanos tiveram no ano passado nos seus negócios diretos ao consumidor. A Paramount e a Warner Bros. Discovery, por exemplo, tiveram perdas de US$ 2 bilhões, ou R$ 10,5 bilhões, no streaming. No caso da Disney, o valor é de US$ 4 bilhões, equivalentes a R$ 21 bilhões.

Nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, os roteiristas contam com um forte sindicado, a WGA, a Writers Guild Association, que há alguns anos ameaçou paralisar Hollywood com uma greve de autores. A WGA negocia acordos coletivos com estúdios e têm arrancado compromissos também das plataformas de streaming.

As negociações para o novo acordo começaram na semana passada, já que o antigo expira no começo de maio. Desde então, o receio de uma greve se espalhou pela indústria. O pano de fundo é parecido com o caso brasileiro. Na era do streaming, os autores americanos consideram ganhar menos do que nos tempos áureos da televisão.

Mas no Brasil não existe uma associação semelhante pelo fato de apenas trabalhadores de carteira assinada estarem associados a sindicatos. "Aqui, o modelo de prestação de serviços não é um vínculo trabalhista", diz Paula Vergueiro, advogada da Abra. "A maioria dos roteiristas trabalha sem esse vínculo, mas isso não deveria ser um motivo para eles ficarem desamparados. Se o mercado impõe novas formas de contratação, isso não quer dizer que o trabalhador deva ficar desassistido."

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