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Livros mudança climática

Como o livro 'Gosma Rosa' previu o caos da pandemia de Covid

Personagem do romance, publicado antes da chegada do vírus, tem que ficar em quarentena por causa do 'vento vermelho'

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Fernanda Lobo

É editora e tradutora, mestre em literatura latino-americana e doutoranda em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais

Gosma Rosa

  • Preço R$ 68,00 (226 págs.); R$ 47,99 (ebook)
  • Autor Fernanda Trías
  • Editora Moinhos
  • Tradução Ellen Maria Vasconcellos

Quando a OMS, a Organização Mundial da Saúde, declarou que o surto da doença causada por um vírus mutante tinha se tornado uma pandemia, no começo de 2020, a autora uruguaia Fernanda Trías comemorava os três meses de lançamento de "Gosma Rosa".

Em um momento de profusão de obras e escritoras hispano-americanas, o livro ganhou diversos prêmios, como o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz. Ele também foi mencionado no The New York Times como um dos melhores livros de 2020.

Capa do livro 'Gosma Rosa', de Fernanda Trías
Capa do livro 'Gosma Rosa', de Fernanda Trías - Divulgação

"Gosma Rosa", que agora chega ao Brasil, acompanha uma mulher sobrevivendo a um desequilíbrio climático brutal que envenena os peixes do rio de sua cidade e faz os pássaros fugirem do céu, além de fazer proliferar um vírus mortífero para humanos. O confinamento é a única maneira de sobreviver. As praias são apenas lembranças. Os hospitais ficam abarrotados de doentes por causa do "vento vermelho".

A comida se torna cada vez mais escassa, muitas vezes se restringindo a um ultraprocessado fornecido por uma empresa gigante, ao que a protagonista chama "gosma rosa". Os edifícios abandonados, as pessoas fugindo da cidade enevoada, o corpo alheio como ameaça, os mortos se acumulando, os movimentos negacionistas. Tudo isso aparece neste livro como se fosse a profecia de um futuro que se provaria tão absurdo quanto imediato.

Apesar da semelhança entre o livro de Trías e a experiência social da pandemia, o valor do título recém-publicado no Brasil está justamente na apreensão, não de um futuro, mas de um presente radical. As pestes já tinham sido narradas e previstas antes.

Um dos livros mais procurados na Europa durante o período pandêmico foi "A Peste", escrito em 1947 por Albert Camus e, no último capitulo de "Crime e Castigo", de 1866, Dostoiévski diz que viria da Ásia um ser microscópico que causaria uma peste.

Mas o que arrebata na prosa de Trías é a linguagem comportando a experiência íntima do sumiço do futuro, que dura no tempo e que, portanto, ainda está à espreita.

A protagonista tem uma relação cheia de arestas com a mãe e uma relação tóxica e codependente com o ex-marido. Ele está internado na ala de crônicos das Clínicas e ela o visita frequentemente. Ela também abandonou sua carreira como jornalista para ser babá de um garoto que possui uma síndrome que o faz comer irrestritamente, mas nunca se saciar. Os afetos são ferozes, como os das pessoas que vivem fora do tempo.

"Gosma Rosa" dá impressão de ser o pino lubrificado de uma dobradiça, um encaixe fabricado entre o tempo passado e o tempo futuro, e acaba funcionando muito bem porque o presente aqui —mesmo o presente do fim— é cheio de detalhes, como só é possível a esses momentos que estão entre um antes e um depois.

Quando tudo está prestes a ruir, qualquer coisa pode ser a salvação, pode ser só mais uma trivialidade ou pode ser o anúncio de uma tragédia. O que Trías parece dizer em sua prosa é que há uma riqueza em se manter lúcido no presente, por mais rotos que estejam os letreiros neons das cidades.

Neste sentido, o livro levanta sedimentos de temporalidade, revolvendo inteligentemente um problema muito contemporâneo, já que, se a modernidade foi marcada por um desejo radical de futuro após tantas experiências traumáticas, o futuro perdeu energia.

Contraditoriamente, o mundo político ainda apresenta confiança no progresso e quer ressuscitar a ideia de futuro como algo redentor em si. O livro de Trías brilha ao não fazer apologias nem ao otimismo e nem ao pessimismo com relação ao futuro, mas a uma absoluta lucidez para "adiar o fim do mundo".

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