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Relatos dos porões da ditadura militar compõem o romance de estreia 'Arrigo'

Sociólogo Marcelo Ridenti conta cem anos de história da esquerda no Brasil em livro que é resposta ao bolsonarismo

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São Paulo

O personagem é fictício, mas essa cena inacreditável de tortura na ditadura militar brasileira é real: "Sima teve calafrios quando o tipo colocou as baratas para brincar sobre sua pele nua", narra o trecho do recém-lançado romance "Arrigo".

"Suportou, enojada, mas tremeu ao ver uma gaiola cheia de ratos. Percebendo a fraqueza, o torturador colocou delicadamente um camundongo para passear em busca de esconderijo nas cavidades do corpo da moça."

pessoas erguendo retratos em preto e branco
Familiares e amigos de torturados e desaparecidos pela ditadura em ato nas dependências do antigo DOI-Codi na zona sul de São Paulo - Suamy Beydoun - 30.mar.2019/Agif/Folhapress

Não somente essa como todas as descrições de tortura de "Arrigo" foram baseadas em relatos de sobreviventes dos porões da ditadura militar e de outros cárceres políticos mantidos por governos autoritários no Brasil do século 20.

O autor é o sociólogo Marcelo Ridenti, professor da Unicamp e um dos mais respeitados pesquisadores dos movimentos de esquerda no país, que lançou, entre outros livros acadêmicos, "Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à Era da TV" e "Brasilidade Revolucionária: um Século de Cultura e Política".

Homem com jaqueta marrom
O sociólogo Marcelo Ridenti, que estreia como romancista - Arquivo pessoal

"Arrigo" é a sua estreia como romancista, numa ficção histórica ancorada nos seus 40 anos de pesquisa sobre a esquerda. A história começa quando o narrador se vê trancado em um apartamento com Arrigo, um homem já centenário, célebre militante comunista de quem ele está escrevendo uma biografia.

A porta não abre, não há internet, telefone fixo ou celular, Arrigo está inerte, parece morto, e o narrador aproveita a clausura um tanto surreal para fazer ajustes em seu texto.

É, portanto, a partir da biografia de Arrigo que o leitor acompanhará um século da história da militância de esquerda no Brasil, da Greve de 1917 até as eleições de 2018.

A chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, aliás, mobilizou Ridenti a realizar o sonho de juventude de escrever um romance. Como alguém que elogia a tortura ganha uma eleição? A resposta que o sociólogo tinha de dar, ele avaliou, não era só acadêmica, precisava ser existencial, e esse caminho o levou a "Arrigo".

Com um amplo rol de personagens, Ridenti retrata as diferentes vertentes da esquerda, as tensões entre elas, seus ideais, métodos e contradições. Arrigo e sua turma se envolvem com figuras reais —na Revolta de 1924, por exemplo, o padrasto anarquista do garoto tem um encontro com Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro e seu histórico dirigente.

Ex-adepto do anarquismo, Astrojildo estava encantado pela Revolução Russa de 1917. Na conversa inventada por Ridenti no romance, ele faz exatamente o que fez na vida real em sua campanha de adesão ao comunismo. Critica a militância de esquerda anterior ao PCB e tenta refutar a ideia anarquista de que o poder do Estado não deveria ser conquistado pelos revolucionários, e sim abolido.

Astrojildo e o padrasto de Arrigo não se entendem, mas resolvem se dar as mãos, tinham em comum a luta contra o governo de Artur Bernardes, um dos mais violentos da história do país.

A passagem que resume os embates entre os anarquistas tradicionais e os novos comunistas foi construída, como todo o romance, a partir de um outro conflito, esse vivido pelo autor, entre o processo de escrita com rigor acadêmico, seu velho conhecido, e as liberdades do texto ficcional que ele começava a experimentar.

"Na primeira versão do texto, essa passagem estava mais didática, mas o texto estava ganhando um caráter de reconstituição histórica e saindo da ficção", diz. "Então, preferi criar diálogos curtos, com posições chave, sem detalhes historiográficos, com grande probabilidade de terem acontecido entre os personagens reais."

Figuras históricas não só cruzam o caminho de Arrigo como inspiram personagens fictícios. Sobral Pinto é um exemplo, jurista reconhecido por sua atuação na defesa de presos políticos na ditadura do Estado Novo e no regime militar. "Arrigo" cita brevemente uma ocupação anterior, nada honrosa e ofuscada em sua biografia, a de Procurador Criminal da República no governo Artur Bernardes, responsável por organizar presídios que eram a barbárie para presos políticos.

Ridenti cria para Sobral Pinto um assistente, Vital Beltrão, e com esse personagem fictício ganha liberdade para tratar das contradições do aclamado jurista. Assim como o advogado que o inspira, o personagem é católico fervoroso, anticomunista e apoiador do golpe de 1964, mas depois passa a lutar, sem cobrar honorários, pela libertação de presos políticos, alguns deles notórios comunistas.

Sobral defendeu Luiz Carlos Prestes; Vital libertou Arrigo, que nunca teve coragem de perguntar se o advogado havia recebido as cartas de denúncias dos prisioneiros políticos no governo Bernardes.

Graciliano Ramos também passa pela vida de Arrigo e lhe dá conselhos, no auge do stalinismo, sobre como deveria ser a leitura da autobiografia de Trótski, "cheia de pimponice e egocentrismo". O escritor preparava o livro "Memórias do Cárcere", justamente de onde Ridenti tirou suas opiniões sobre o polêmico líder soviético.

Arrigo passa por Dobris, um castelo perto de Praga que o governo soviético transformou em hospedagem para escritores comunistas. Lá, toma um Romanée-Conti com Jorge Amado. A procedência do vinho caro era a adega do líder nazista Goebbels, pilhada de judeus franceses na Segunda Guerra Mundial e depois expropriada pelo soviéticos.

Celebrações semelhantes aconteceram, de fato, em Dobris, com a presença do romancista brasileiro, do poeta chileno Pablo Neruda e de outros intelectuais comunistas notórios, o que Ridenti aborda no livro que lançou no ano passado, resultado de mais de dez anos de pesquisa, "O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural".

Reais e imaginários, os personagens passam por prisões, fugas, assaltos, sequestros e batalhas campais ao longo da história da militância revolucionária não só no Brasil como na Guerra Civil Espanhola e na resistência francesa contra a ocupação nazista, em ritmo frenético e calcado no folhetim, sempre ancorado na realidade histórica —mesmo em detalhes que, de tão absurdos, soam inventados.

É o caso da tortura sofrida por Sima, namorada de Arrigo. Ridenti tirou a passagem do depoimento que a cineasta Lúcia Murat deu à Comissão da Verdade. Aos 22 anos, na ditadura militar, ela passou por sessões que envolviam pau de arara, choques e agressões sexuais.

"Hoje, parece loucura", disse. "Mas um dos torturadores tinha uma caixa onde guardava as baratas amarradas por barbantes. E, através do barbante, conseguia manipular as baratas no meu corpo." Uma delas foi colocada em sua vagina.

Quatro décadas depois, quando os adeptos de baratas amestradas estavam no poder, Ridenti reconstituiu em "Arrigo" esse Brasil que parece loucura, mentira, mas é real.

Arrigo

  • Preço R$ 77 (256 págs.)
  • Autoria Marcelo Ridenti
  • Editora Boitempo
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