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Aos 80, Jards Macalé renova a MPB em um dos melhores álbuns do ano

Disco de inéditas 'Coração Bifurcado' tem tesouros com Nara Leão, Maria Bethânia e Ná Ozzetti no lugar de Gal Costa

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São Paulo

Coração Bifurcado

  • Quando Lançamento na sexta (28) nas plataformas digitais
  • Autoria Jards Macalé
  • Produção Guilherme Held, Pedro Dantas, Rodrigo Campos e Thomas Harres
  • Direção Romulo Fróes
  • Gravadora Biscoito Fino

Nos anos 1980, Jards Macalé tocava em lugares remotos e improváveis. Em shows de voz e violão, costumava fazer uma cirúrgica versão do "Hino Nacional". Ao completar 80 anos, em forma, o compositor carioca lança "Coração Bifurcado", álbum como há muito não se via na música popular brasileira.

Em seu "Hino Nacional", cantado a sério, com a letra intacta —era memorável como dizia "se o penhor dessa igualdade/ conseguimos conquistar com braço forte/ no teu seio/ ó liberdade/ desafia o nosso peito a própria morte"—, a estrela era o violão: Macalé domina o canto acompanhado de João Gilberto e a levada de João Bosco, mas os desestabiliza com o blues rasgado e o rock. Enche a bossa nova de vidro e corte.

Retrato cantor e compositor Jards Macalé, pelas ruas do Leme - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Cinquenta anos após o LP "Banquete dos Mendigos", de 1973, "Coração Bifurcado" é um disco sobre os amores do amor. Mesmo que o amor seja a medida das coisas que são e das que não são, como na faixa final, "Cante", na qual proclama que "a melhor coisa do mundo além do amor –como o amor– é cantar".

A arte de Macalé nunca recusou a sujeira, e por isso destoa tanto do mundo sonoro limpinho e asseado do século 21, e era natural que ele se encontrasse com músicos mais jovens de mesmo DNA, como o baterista e percussionista Thomas Harres, o guitarrista, cavaquinista e percussionista Rodrigo Campos, o guitarrista Guilherme Held e o baixista Pedro Dantas.

Entre os parceiros estão o próprio Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Clima, Romulo Fróes, Alice Coutinho, José Carlos Capinan e Ronaldo Bastos. O amor reúne forças para se bifurcar.

Desde os primeiros compassos, baixo, bateria e guitarra distorcida já levam a sonoridade do álbum a algum lugar ausente dos anos 1970. Sua voz não tem a limpidez do início da carreira. É profunda, grave, escura, com gosto para desaguar em "drives" de inspiração guitarrística no final das frases. O "Amor In Natura", parceria com Capinan, tudo-nada pode: ele "derruba casas", tem "uma coisa que não tem no céu".

A linha descendente de baixo do magistral samba composto com Kiko Dinucci, a faixa-título, emerge de um canto para Exu —é cavaquinho e baixo synth com reco-reco e atabaque a mostrar como "um amor faz sofrer" e "dois amô faz chorar".

"Vivo dentro de um poema/ preso na minha canção", canta Macalé em "A Arte de Não Morrer", a segunda parceria com Capinan, que introduz arranjo de sopros a cargo de Antônio Neves, quem também orquestra a gafieira torta de "Você Vai Rir", feita com Clima.

A voz intacta e imaculada de Maria Bethânia domina por completo o samba canção "Mistérios do Nosso Amor", a primeira das duas parcerias com Ronaldo Bastos (a outra é "O amor Vem da Paz"), ambas arranjadas por Cristóvão Bastos. As guitarras dão um tempo para a delicadeza, já que "destino é o caminho de tudo que não tem solução".

Estamos ainda em abril, mas já temos uma candidata favorita à melhor música popular brasileira lançada em 2023. A única de voz e violão do álbum, "Grãos de Açúcar", parceria com Alice Coutinho, explica, aprofunda e transfigura os mistérios de "Dindi", de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira.

Com primorosa construção, tanto formal como melódico-harmônica —o próprio violão de Macalé é extraído das profundezas do piano de Jobim—, a canção atinge a encruzilhada em que beleza e tristeza se abraçam, "como quem apaga meus versos: fica, Dindi".

A imagem dos navios deixando a cidade, como grãos de açúcar "seguindo faróis" nasce antológica, e deságua nos quase frívolos "mas como poeta sou água com açúcar, Dindi". "Mesmo que você não fale/ as vozes são muitas e enchem o ar". Tanto para Jobim como para Macalé, Dindi não existe: "você não existe, Dindi". Será?

"Amo Tanto", com letra e música de Macalé, é um tesouro histórico. Trata-se da emocionante gravação de Nara Leão feita em 1966 com Copinha na flauta, Dino 7 Cordas ao violão e Canhoto no cavaquinho.

As guitarras voltam nos flashes de sexo na cidade, "A Foto do Amor" —parceria com Rodrigo Campos—, e seguem etéreas em "Pra um Novo Amor chegar" —feita com Guilherme Held e Fróes—, música na qual Macalé imprime um definitivo solo de violão.

E ainda tem Ná Ozzetti —segura e plena na missão de cantar a faixa que seria de Gal Costa, pairando sobre a guitarra solitária de Held— em "Simples Assim", composta com Fróes.

Em época na qual os vapores amorosos são frequentemente barateados, a poesia musical de Jards Macalé ressurge inteira, intensa, imensa.

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