Artistas acusados de antissemitismo vêm ao Brasil e trabalham com MST

Pivô de polêmica que manchou reputação da Documenta de Kassel, coletivo Taring Padi ensina a fazer marionetes em SP

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Mural de desenhos

Detalhe da obra 'People's Justice', do coletivo da Indonésia Taring Padi, acusada de antissemitismo Reprodução

São Paulo

Reunido na Casa do Povo, um grupo de pessoas pinta figuras variadas em pedaços de papelão. Um sapo com a língua para fora, um peixe com a espinha à mostra, um palhaço com o cifrão que simboliza dinheiro tatuado no pescoço, um indígena com o coração à vista e o ex-presidente Jair Bolsonaro com corpo de cobra, dentes de vampiro e chifres de diabo.

Naquela tarde de sol, quatro integrantes do Taring Padi, um coletivo da Indonésia pivô de uma das maiores polêmicas do mundo da arte no ano passado, dava uma oficina de criação de marionetes de papelão na instituição judaica localizada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo.

O coletivo foi acusado de antissemitismo por seu painel "People's Justice", ou a justiça do povo, exibido em Kassel como parte da Documenta, uma das exposições de arte mais importantes do mundo.

O imenso mural de 8 metros de altura por 12 de comprimento, desenhado há mais de 20 anos como uma crítica à ditadura na Indonésia, causou a ira nos alemães por causa de dois personagens. O primeiro é um judeu ortodoxo vestindo um chapéu no qual está escrito SS, a sigla para a guarda de elite da Alemanha nazista.

O segundo retrata um militar da Mossad, o serviço de inteligência de Israel, com focinho de porco. Este mesmo oficial usa no pescoço um lenço estampado com a estrela de Davi, símbolo empregado pelos nazistas para facilitar a identificação dos judeus nos campos de concentração.

"Na Indonésia, não conhecíamos tópicos ou questões antissemitas até nos acusarem na Alemanha por causa das figuras. Nunca foi nossa intenção machucar alguma raça. Somos antirracistas e contra o autoritarismo", diz Aris Prabawa, um dos integrantes do Taring Padi, enquanto fuma um cigarro.

Sentado a seu lado, Hestu Nugroho, outro membro, acrescenta que o Taring Padi não sabia que os personagens seriam problemáticos na Alemanha, porque o coletivo já havia mostrado o painel diversas vezes em outros países e nunca teve uma reação tão dura como a que recebeu do público e da imprensa durante a Documenta.

Devido à avalanche de críticas, "People's Justice", que era exibido pela primeira vez na Europa, foi coberto por um pano preto e, dias depois, removido pelos organizadores da Documenta. A mostra tinha acabado de abrir as portas, atraindo milhares de pessoas do mundo todo para a pequena cidade alemã.

Prabawa afirma considerar o desmantelamento da obra um ato de censura. "Não tivemos tempo de dialogar e explicar o trabalho. Se tivéssemos a oportunidade de explicar, talvez fosse diferente. Foi tipo, remova."

À época, a diretora-geral da Documenta, Sabine Schormann, disse que era doloroso que uma obra com conteúdo antissemita tivesse sido instalada e pediu desculpas. Segundo um comunicado assinado por Schormann, o coletivo estava de acordo com o desmonte do painel. O Taring Padi também se desculpou.

No início dos anos 2000, quando "People's Justice" foi feito, a Indonésia havia acabado de sair de uma ditadura de mais de três décadas comandada por Suharto.

Naquele contexto de liberdade recém-adquirida, Prabawa e outros colegas de uma escola de arte fundaram o Taring Padi, um coletivo de viés progressista, afeito a causas sociais. Hoje, 15 pessoas compõem o grupo.

"People's Justice", contudo, não é somente o painel. O trabalho se completa com marionetes de papelão feitas por integrantes do coletivo com comunidades locais. Para a Documenta, foram produzidos mais de mil bonecos em parceria com imigrantes, artistas de rua e alunos de escolas na Alemanha, na Indonésia, na Austrália e na Holanda.

Como são coloridas e de estética lúdica, as marionetes servem para tornar os protestos de rua mais divertidos e menos tediosos, afirma Nugroho. Quando carregadas lado a lado pelo público numa manifestação, lembram um desfile de carnaval, até porque muitas delas são articuladas.

Ao serem confeccionadas, as marionetes também ajudam os integrantes do grupo a estreitarem laços com as comunidades com as quais colaboram. Os quatro membros do Taring Padi no Brasil desenvolvem agora trabalhos com integrantes do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na escola Florestan Fernandes, no interior de São Paulo.

Carnival Remembering 4 years of the Lapindo mud Tragedy at Siring Barat, Porong, Sidoarjo, East Java, Indonesia, 2010, courtesy Taring Padi
Misto de protesto e carnaval do Taring Padi em memória a uma tragédia envolvendo um vulcão na Indonésia - Divulgação

As obras resultantes desta temporada serão exibidas em Amsterdã e em Brisbane, na Austrália, no ano que vem. Já as marionetes feitas na Casa do Povo não devem ser mostradas, porque são fruto de uma oficina para o público e não de um projeto de exposição.

É de se perguntar como um coletivo tachado de antissemita veio parar, justamente, numa instituição criada para relembrar as vítimas do Holocausto. O convite ao grupo partiu de Benjamin Seroussi, diretor da Casa do Povo, que os conheceu na Documenta.

Seroussi diz que a ligação do Taring Padi com movimentos sociais e o fato de o grupo abordar ditadura e reforma agrária em seus trabalhos tinha tudo a ver com o contexto brasileiro e o MST. Afirma ainda que o pedido de desculpas do coletivo na Documenta foi um gesto de humildade e pesou para o convite da Casa do Povo. Era uma brecha para o diálogo.

Fora isso, a ideia era, sim, tratar de antissemitismo. "Qualquer instituição seria confrontada com essa questão, mas acho que a gente é a melhor instituição por sermos judeus. Tem um problema ali [no painel], mas isso não quer dizer que a gente não possa conversar", afirma Seroussi.

Ele reconhece como antissemita a iconografia de "People's Justice", mas se posiciona contra congelar os artistas neste rótulo. Diz apostar no diálogo e na convivência para que eles enxerguem seus erros.

O tsunami desencadeado pelo Taring Padi foi tão forte que levou a diretora da Documenta a renunciar e manchou a reputação da mostra. Os integrantes do grupo afirmam ter aprendido com o incidente e, para eles, é hora de seguir em frente. Questionados se exibiriam o painel da discórdia de novo, Prabawa titubeia. "Talvez. Não sabemos."

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