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Davi Kopenawa se alia a 'gente de longe' para proteger terra yanomami

'O Espírito da Floresta' é livro habitado por dois eus, o do xamã que confia as palavras e do antropólogo que empresta a escrita

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Tatiane Klein

Jornalista e antropóloga, é doutoranda em antropologia social na Universidade de São Paulo

São Paulo

Em março, o eminente líder indígena Davi Kopenawa esteve na capital paulista para receber o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de São Paulo. Ele se alegrou com a cerimônia, mas estava revoltado com os efeitos da invasão da Terra Indígena Yanomami pelo garimpo ilegal. "A minha alma está de luto, porque morreram 577 crianças durante quatro anos. Jair Bolsonaro matou meu povo."

retrato de davi kopenawa
O escritor e líder indígena Davi Kopenawa Yanomami - Adriano Vizoni - 26.jan.2023/Folhapress

O xamã não se furtou de convocar todos os presentes —um público majoritariamente não indígena— a continuar aprendendo com as palavras e saberes yanomami e ajudá-lo a "segurar a nossa terra e o nosso universo". Ele falava de "urihi a", a "terra-floresta", habitada por cerca de 29 mil yanomami e protagonista de seu novo livro com o antropólogo Bruce Albert.

Lançado pela Companhia das Letras, "O Espírito da Floresta" é uma aposta na aliança dos Yanomami com "gente de longe" disposta a escutar suas palavras, um movimento que a obra traduz em diferentes aspectos.

O engajamento não se reduz à campanha de vendas antecipadas da edição brasileira, que permitiu à Hutukara Associação Yanomami arrecadar R$ 90 mil para fazer frente à grave crise de saúde que ainda vitima seu povo. "Os brancos em torno de nossa terra são hostis (...) Quando gente de longe nos conhece e fala de nós, a gente de perto hesita em nos destruir", escreve Kopenawa.

A maioria dos artigos, à exceção de dois depoimentos inéditos, foram elaborados para não especialistas, publicados originalmente em catálogos de diferentes exposições da Fondation Cartier para a Arte Contemporânea e em obras informativas —como é o caso de "Somos todos 'índios'", nesta Folha.

Mas não há simplificação: o esforço dos autores é o de levar a sério o pensamento xamânico, como escreve Albert, fazendo jus a "uma forma de xamanismo político inédito" em que os complexos saberes yanomami se deixam traduzir em palavras, imagens e sons estrangeiros.

É o caso da famosa aliança com a fotógrafa Claudia Andujar, cujas imagens acompanham o livro e que, desde os anos 1970, durante a primeira grande invasão garimpeira à terra yanomami, coloca sua obra a serviço da causa yanomami.

Kopenawa e Albert escrevem "O Espírito da Floresta" sob a forma de uma conversa. Capítulo a capítulo, textos assinados pelo xamã e pelo antropólogo se alternam justapostos, articulados por temas comuns, como a pandemia de Covid-19 e outras epidemias, sem que um busque se sobrepor ao outro.

Em uma das duplas de capítulos, extraídos do catálogo da exposição francesa "Yanomami: L'Esprit de la Fôret", os autores rememoram os encontros entre xamãs yanomami e artistas de diferentes países na aldeia Watoriki. Em outra, os diálogos de Kopenawa com Cédric Villani, que levaram a comparações entre os matemáticos e suas equações e os xamãs e seus xapiri pë, espíritos auxiliares.

Em um momento, Kopenawa escreve: "Os brancos pensam que a floresta está colocada sem razão sobre o chão, como morta. Não é verdade"; em outro, Albert secunda: "Como os humanos, a 'terra-floresta' sofre e sente dor quando derrubam suas árvores".

Kopenawa e Albert ensinam que a floresta não é silenciosa como parece, mas animada por uma miríade de vozes —seres humanos e não humanos com os quais "os Yanomami mantêm um diálogo constante".

Nesse sentido, a escrita desses textos não difere dos de "A Queda do Céu", o primeiro e consagrado livro da dupla —fruto de um experimento colaborativo de longa data entre os autores e chamado por eles de "pacto etnográfico".

A voz do narrador é sempre habitada por dois "eus": o do xamã que narra e que confiou suas palavras ao antropólogo; o do antropólogo que escuta e que empresta sua escrita ao pensamento do xamã.

Uma escrita feita à imagem do ofício dos próprios xamãs yanomami, que perpetuam as palavras dos espíritos da floresta cantando e dançando como eles.

O Espírito da Floresta

  • Preço R$ 59,90 (232 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Bruce Albert e Davi Kopenawa
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Rosa Freire d’Aguiar
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