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Waly Salomão viaja pelo mundo, pela arte e pelas drogas em coletânea

'Jet Lag' traz 36 poemas que exploram as conexões ocultas entre os diferentes significados de 'viagem'

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Jet Lag - Poemas para Viagem

  • Preço R$ 99,90 (128 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Waly Salomão (org. Omar Salomão)
  • Editora Companhia das Letras

A ideia de coletânea no sentido forte de criação não é estranha ao talento poliforme do poeta baiano Waly Salomão, que, só para citar dois exemplos notáveis de invenção editorial, organizou os melhores livros de Caetano Veloso ("Alegria, Alegria") e de Torquato Neto ("Os Últimos Dias de Paupéria"), para não falar da revista Navilouca, de número único, mas definitivo para o desbunde artístico dos anos 1970.

homem branco enquadra o próprio rosto com as mãos para a câmera
O poeta e compositor Waly Salomão, em fotografia de 1982 - Manoel P. Pires/Folhapress

Já aqui, em "Jet Lag - Poemas para Viagem", é um dos filhos do autor, Omar Salomão, que se encarrega da tarefa de produzir uma coletânea da poesia do pai, da qual se desincumbe a partir de uma concepção tradicional de viés temático.

Reúne um conjunto de 36 poemas bastante diversos entre si, em que o mais estimulante, em termos de leitura crítica, é a exploração das equivocidades e conexões ocultas entre os diferentes signos de "viagem", retirados dos livros de Salomão com destaque para "Tarifa de Embarque", de 2000.

Formalmente, predominam na sua poesia o verso branco livre, isto é, sem rima regular ou medida fixa; a enumeração, que abrange desde sinonímias a listagens caóticas; a paronomásia e a aliteração, que se apoiam na repetição fônica no início e no interior dos versos; e, de maneira persistente, a adjetivação sonora, o emprego de expressões populares e trocadilhos.

Já por isso se percebe que são poemas de muita fluência, oralidade e flexibilidade de elocução, que Salomão sabia explorar em suas leituras públicas com voz potente e gestos largos, que, por vezes, tocavam o histriônico, sem desafinar.

A constelação sígnica da noção de "viagem", na coletânea, contempla vários sentidos, dos quais destaco três.

O primeiro é literal, no qual a poesia se constrói como súmula evocativa de diferentes lugares que o autor conheceu, desde a cidade da infância de "tabaréu", no interior da Bahia, até o Rio de Janeiro, onde viveu, além de outros sítios do Brasil e do exterior, como a região do "crescente fértil", a meia-lua formada entre os rios Tigre, Eufrates, Jordão e Nilo ("ali está situada Al-Rouad/ minúscula ilha fenícia de meu pai").

Não raras vezes, esse tipo de descrição desemboca em crônicas de costumes ("Bahia de vistas turvas e línguas de trapo"), ou anedota de submundo e de amor bandido ("Grã-fina da pesada (superoito a tiracolo): -- Nasceu-me a ideia de conhecer melhor o black-ground"), que insinuam um Nelson Rodrigues mais pop e menos reacionário.

O segundo sentido de "viagem" que está presente na coletânea é sobretudo simbólico, quando ela se divide em duas direções quase opostas: uma, mais melancólica e solitária, voltada sobretudo à busca das origens paternas de imigrante sírio; outra, muitas vezes eufórica, que refere a expansão da percepção por meio das drogas.

São trips em fluxos de consciência, cujo ápice se dá nos dois poemas extraídos de seu livro de estreia, que é também a sua obra-prima: "Me Segura qu'Eu Vou Dar um Troço", de 1972, ideado em torno da prisão por porte de drogas que o levou por 18 dias ao Carandiru.

Para fechar este esboço de "Jet Lag", há um terceiro sentido da "viagem" contido na coletânea, talvez o mais insistente deles, que é o dos nexos entre arte e vida, o que não surpreende num autor formado nos anos 1960 e 70.

Nesse aspecto, os pontos de ligação acentuados por Salomão são a leitura dos clássicos, especialmente os de viés órfico, quando a palavra interfere e "desoculta" a realidade que o cotidiano mascara ("Abr’olhos para as flores da trepadeira Camõesia máxima"); a erótica "latejante" das línguas ("e, balbucio só o c de bulício, cio, chiado,/ cama, cunhantã, cunhã e cobertor"); certo populismo tropicalista, que faz vibrar a conexão mística com a gente simples ("Quem canta aí fora na varanda de Dona Ana? / Que entidade range a rede gostosa da casa de/ Eliana?).

E, pra resumir tudo, uma paixão da vida que só se efetua de fato quando recolhida na poesia ("Em louvor da poesia futura de Propertius/ Outrora a vida fervilhou em Tebas/ E era Troia adornada com torres").

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