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Em 'Nada Sobre Meu Pai', diretora vai ao Equador à procura do pai desaparecido

Preparado ao longo de 17 anos, documentário de Susanna Lira é exibido pela primeira vez ao público no festival É Tudo Verdade

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São Paulo

Primeiro veio o problema. Em 2005, a filha da documentarista Susanna Lira recebeu da escola a tarefa de desenhar uma árvore genealógica. Com oito anos na época, a garota sabia o que preencher no ramo da avó materna, mas não tinha o que indicar na linha do avô materno.

Susanna Lira não conhecia o seu pai. Não só isso, tinha pouquíssimas informações sobre ele. Sabia que o homem era equatoriano e respondia pelo nome de Hélio Francisco de Castro, muito provavelmente um pseudônimo, devido à ligação com a militância de esquerda. Sabia ainda que tinha apenas 19 anos quando conheceu a mãe da documentarista, em 1970 —Lira foi fruto desse namoro.

Quando Lira nasceu, o rapaz já tinha desaparecido e nunca mais deu qualquer sinal. Não deixou nenhuma fotografia.

Cena do filme 'Nada Sobre Meu Pai', de Susanna Lira
Cena do documentário 'Nada Sobre Meu Pai', de Susanna Lira - Divulgação

Depois do impasse com a árvore genealógica da filha, surgiu a ideia da cineasta —por que não fazer um documentário sobre o impacto da ausência paterna?

Àquela altura, Lira não imaginava a saga que teria pela frente. Entre esse desejo inicial e a conclusão do filme, 17 anos se passaram, de longe o projeto mais complexo da diretora de documentários como "Clara Estrela", de 2017, e séries documentais como "Casão - Num Jogo sem Regras", do ano passado.

"Nada Sobre Meu Pai", que brinca com o título do filme de Pedro Almodóvar "Tudo Sobre Minha Mãe", tem sua primeira exibição para o público na edição carioca do festival É Tudo Verdade neste domingo. Nos dias seguintes, haverá sessões em São Paulo.

No início do projeto, Lira planejava um filme com histórias de pessoas marcadas pela ausência paterna. Em meio a outros trabalhos, ela e sua equipe iniciaram pesquisas com esse enfoque até a reviravolta em um laboratório de roteiros em Montevidéu, em 2011.

Depois da apresentação da documentarista no evento uruguaio, um diretor de uma TV do Equador a chamou, em particular, e a provocou. Por que falar de outros no filme quando era justamente a história dela a mais interessante de todas?

Lira se convenceu de que esse novo caminho fazia mais sentido, mas outro impasse logo se impôs. Em um projeto assim, mais pessoal, seria inescapável a presença dela diante da câmera, algo que rejeitava com convicção. "Sempre tive pavor da ideia de aparecer nos meus filmes."

Nos anos seguintes, vieram sessões de terapia e discussões com colegas para que a diretora se sentisse à vontade com esse enfoque. E ainda a busca de financiamento para a produção, que só faria sentido com a ida de uma pequena equipe de filmagens a Quito.

A cineasta e documentarista Susanna Lira
A cineasta Susanna Lira em 2022 - Divulgação

Antes de viajar ao Equador, em abril do ano passado, ela publicou um anúncio nos principais jornais do país em que contava o pouco que sabia sobre seu pai e dizia estar à procura dele. Deixou telefone e email. A embaixada brasileira em Quito também divulgou um comunicado em seu site sobre a busca de Lira.

O caso virou um fenômeno midiático em Quito, com dezenas de entrevistas da diretora a repórteres de jornais, TVs e rádios, algumas delas apresentadas em "Nada Sobre Meu Pai". Como se vê, a postura de Lira não inspira piedade, não estamos diante da "mulher vulnerável à procura do pai". O tom, pelo contrário, é de altivez.

Tanta visibilidade levou alguns equatorianos a entrar em contato com Lira dizendo que tinham informações sobre o pai dela. Esses encontros entre a documentarista e pessoas até então desconhecidas e que talvez mudassem a vida dela estão entre as passagens mais interessantes do filme.

"Gosto de planejar o máximo possível. Neste filme, eu me coloquei num abismo, que é o imponderável. Em Quito, não sabíamos quem iríamos entrevistar no dia seguinte", conta. Ou seja, o documentário nasceu das surpresas que saltavam dia após dia ao longo de três semanas na capital equatoriana, unindo duas cargas, a profissional e a emocional. "Foi o filme mais difícil da minha vida."

Os desafios apresentados em "Nada Sobre Meu Pai" também fazem do filme uma reflexão sobre a memória e o próprio cinema. "Quando não se pode lembrar, porque não existem informações para lembrar, a poesia cria imagens que vão preencher essa necessidade de memórias que não existem", diz, a certa altura do documentário, o cineasta equatoriano Pocho Álvarez.

Ele foi um dos diretores a registrar as mobilizações populares no país contra o regime autoritário de Velasco Ibarra.

Ao rever essa fase de repressão política no Equador, "Nada Sobre Meu Pai" evoca filmes anteriores de Lira sobre a ditadura no Brasil, como "Torre das Donzelas", de 2019, que lembra a ala das presas políticas do presídio Tiradentes, em São Paulo.

Na busca por seu pai, Lira encontra o ativismo político e os mistérios do cinema.

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