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Televisão jornalismo

Como Globo Repórter, que faz 50 anos, foi da inovação à monotonia

Jornalismo que produzia narrativa crítica sobre a realidade brasileira acabou acomodado em reportagens de exotismos

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Igor Sacramento

É professor da Escola de Comunicação da UFRJ e autor, com Bruno Chiarioni, do livro 'O Repórter na TV: Uma História dos Programas de Reportagem no Brasil'

Rio de Janeiro

Em 3 de abril de 1973, estreou Globo Repórter. O jornalístico da TV Globo integrava um dos quatro programas que compunham a "terça global", junto do Globo Gente —programa de entrevistas apresentado por Jô Soares— e musicais, que completavam o rodízio da programação do mês.

No primeiro programa, foram apresentadas quatro reportagens —as escolas de samba, os índios americanos, as eleições chilenas, argentinas e francesas e uma retrospectiva das corridas de Fórmula 1. Todas as reportagens contavam com a narração de Sérgio Chapelin, o apresentador.

O apresentador Sérgio Chapelin durante apresentação do Globo Repórter - Renato Rocha Miranda/Divulgação

A atração derivava da experiência documental de Globo Shell-Especial, no ar entre 1971 a 1973. Paulo Gil Soares, diretor-geral dessa série e posteriormente do Globo Repórter até 1982, tinha como objetivo aliar as linguagens e políticas do cinema novo ao telejornalismo em rede nacional da emissora da família Marinho.

Contratou cineastas como Eduardo Coutinho, Maurice Capovilla, João Batista de Andrade e Walter Lima Júnior para a equipe fixa do programa. Assim, eles realizaram documentários que apresentam um "Brasil Verdade", o dito Brasil profundo, nas suas mazelas e desigualdades sociais, contrastando-se com as imagens do país do futuro propagadas pelos governos brasileiros durante a ditadura militar.

Documentários como "Theodorico, o Imperador do Sertão", de 1978, de Coutinho, "O Último Dia de Lampião", de 1975, de Capovilla, e "Caso Norte", de 1977, de Andrade, marcaram época e permanecem frequentemente lembrados e comentados em cursos e mostras de cinema e televisão. Pela imprensa especializada em televisão da época, o Globo Repórter era reconhecido por telejornalismo crítico e combativo.

A presença daqueles cineastas na direção de documentários no formato inicial do Globo Repórter reforça a observação astuta de Roberto Schwarz sobre a produção cultural dos anos de ditatura militar de que, apesar da ditadura da direita, havia relativa hegemonia cultural de esquerda no país.

A TV Globo contratou diversos artistas —cineastas, dramaturgos, atores— vinculados a movimentos e partidos de esquerda da época, porque buscava nessa produção altamente consumida pelas classes médias urbanas escolarizadas a legitimação de uma televisão de qualidade, o que não obtivera nos seus primeiros anos de funcionamento.

As críticas a programas de auditório como os de Chacrinha fizeram que o jornal a Última Hora com apoio da Igreja Católica promovesse uma campanha contra o "grotesco na TV". E a Globo era o principal alvo.

Mas nem só de documentários vivia a programação do Globo Repórter. Havia reportagens de conteúdo próprio e material comprado por emissoras estrangeiras, os enlatados

Depois do primeiro cancelamento do Globo Repórter em 1982 e seu retorno no ano seguinte, o repórter, título do programa, enfim, de praticamente ausente em frente às câmeras, passa a ser protagonista da narrativa. Com inspiração no estadunidense 60 Minutes, o novo formato tem no testemunho do repórter seu centro.

Lilia Teles assina a reportagem do ‘Globo Repórter’ sobre saúde Globo - Globo

Aos 50 anos, chegando à maturidade, o programa conta tanto com audiência quanto formato consolidados. Reportagens sobre os mais diferentes países do mundo, os hábitos mais saudáveis e sobre novas descobertas científicas e tecnológicas são muito comuns.

Nessas, muitas vezes, a presença do repórter é fundamental, não apenas como testemunha dos acontecimentos, mas como um agente de performatização.

Ao longo dos anos, o jornalismo que produzia narrativa críticos sobre a realidade brasileira foi superado pela reportagem de exotismos. O programa se acomodou numa fórmula, reforçada por uma audiência consolidada e por jornalistas-celebridades carismáticas como Sandra Annenberg e Glória Maria —esta, uma lembrança de ruptura e graça. Sendo referência e dialogando com a linguagem dos vlogs, a repórter se lançava nas histórias, era um acontecimento-performance.

Mas o programa se tornou monótono. Há um excesso de reportagens sobre curiosidades, temas turísticos e científicos, mas sem qualquer gesto de construção de narrativas críticas sobre a realidade. Diferentemente do programa em suas origens, tornou-se isento, ou até mesmo alheio à realidade brasileiro. Desvendar o Brasil em suas complexas desigualdades social definitivamente deixa de ser um foco.

O jornalismo investigativo e o documentário do cinema-verdade que moldavam o formato do programa faziam haver uma preocupação com a análise social —as implicações sociais e políticas do que é capturado no filme.

Esse flerte com a políticas e as linguagens das vanguardas cinematográficas, como o cinema novo, fez do programa um conjunto de emissões que se preocupava com o que estava sendo filmado e em como os programas poderiam contribuir para uma formação de consciência crítica.

Isso se perdeu totalmente nas intensas mesclas entre o jornalismo e o entretenimento, que caracteriza a produção televisiva desde o final da década de 1990. Nas décadas seguintes e até hoje, o programa se mantém na mesmice de temas e formatos, dando a sensação de falta de inovação, criatividade e crítica.

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