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Filmes mostra de cinema

Jean-Luc Godard ainda precisa de documentário que faça jus ao seu gênio

Cineasta é homenageado no festival É Tudo Verdade, que exibe 'Godard Cinema', de Cyril Leuthy, que revê toda a sua carreira

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Jean-Luc Godard é um dos homenageados do festival de documentários É Tudo Verdade, em sua edição deste ano. Morto em setembro de 2022, o cineasta é tema do documentário "Godard Cinema", de Cyril Leuthy. O festival ainda exibirá, na íntegra, a minissérie "História(s) do Cinema", cuja versão definitiva foi lançada em 1998.

Imaginem o espectador brasileiro desavisado passando em frente a um cinema em algum momento a partir de 1967 e observando o nome do filme em exibição —"Quando Duas Mulheres Pecam". Ele entra e vê uma obra-prima por engano. Provavelmente não entraria se estivesse escrito "Persona", título original do filme de Ingmar Bergman.

Cena do documentário 'Godard Cinema', de Cyril Leuthy
Cena do documentário 'Godard Cinema', de Cyril Leuthy - Reprodução

O mesmo engano pode acontecer com algum espectador desavisado de hoje, que pode escolher a minissérie "História(s) do Cinema", de Jean-Luc Godard, na programação do É Tudo Verdade, esperando uma análise didática e informativa sobre a evolução da sétima arte ou mesmo algumas histórias contadas em forma de filme.

Não é o que Godard tinha em mente. Antes, o que o hipotético espectador verá nesse monumento construído entre 1988 e 1998 é um grande poema feito de imagens e sons. Por vezes, imagens que não chegamos a ver fixamente, pois se alternam com outras em velocidade, num efeito estroboscópio que se nega à retenção.

O último longa realizado por Godard, "Imagem e Palavra", tinha como título original "Le Livre d'Image", ou o livro da imagem, numa tradução literal. Pois é, poeticamente falando, um livro de imagens que o cineasta apresenta na minissérie. Uma coleção de imagens de todos os tipos, em movimento, stills de filmes, fotogramas, pinturas, gravuras, fotografias, vídeo, filmes pornográficos antigos, animações e o que mais fosse possível.

Até mesmo o cinéfilo mais voraz terá dificuldade de reconhecer todos os filmes desfilados em "História(s) do Cinema". Simplesmente porque não há tempo para pensar. Uma imagem sucede ou se sobrepõe a outra com muita rapidez. Lembramos que Godard também é um cineasta da montagem, como Sergei Eisenstein.

Por muitas vezes, as pistas são falsas —aparece por um tempo o nome de um filme na tela, mas vemos imagens de outros, podendo conter ou não uma imagem do filme mencionado. Quem quiser brincar de adivinhar terá uma frustração. Quem admira poesia em cinema encontrará fascinação.

Cena de 'História(s) do Cinema', de Jean-Luc Godard
Cena de 'História(s) do Cinema', de Jean-Luc Godard - Divulgação

Ao associar fotogramas com pinturas, Godard faz também um inventário poético da imagem e investiga o que o cinema herdou da fotografia, que por sua vez herdou da pintura, incluindo a missão de interpretar o mundo com realismo.

A partir do terceiro episódio, um certo didatismo é introduzido. É só para dar um gostinho. Continuamos no terreno da investigação. O pensamento é livre, mas as associações de imagens são muito pensadas, respondem a uma ordem estabelecida por Godard.

Foi preciso vivência e, ao mesmo tempo, o espírito desbravador de um jovem para atingir o mais alto nível artístico nesses oito episódios que somam quatro horas e meia de duração.

"Godard Cinema", por outro lado, é a antítese de Godard. Leuthy opta pelo didatismo, no velho formato entrevistas mais imagens de arquivo. Um documentário na acepção da palavra, enquanto "História(s) do Cinema" é inclassificável.

Um terço do filme é dedicado à primeira parte da carreira de Godard, da fase nouvelle vague, até "Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela". A segunda parte vai de "A Chinesa", a revolução anunciada, lançada em 1967, até o final da experiência de filmes militantes com o grupo Dziga Vertov.

Os experimentos com vídeo iniciados em meados dos anos 1970, bem como o acidente de moto que quase tirou a vida do cineasta em 1971 compõem o terceiro capítulo, que mostra ainda seu envolvimento com Anne-Marie Miéville, cineasta e montadora com quem viveu até sua morte.

A volta a um cinema mais próximo do palatável na virada dos anos 1970 para os 1980 marca o quarto capítulo, e sua carreira começa a passar mais depressa. Vemos um pouco de "Salve-se Quem Puder - A Vida", outro tanto de "Detective", pequenas porções de alguns poucos filmes e chegamos a "História(s) do Cinema", após o qual Leuthy parece perder o interesse.

O documentário é bom de se ver porque seleciona bem algumas das imagens criadas pelo próprio Godard e tem imagens de arquivo raras. Mas o cineasta ainda merece um documentário que faça justiça a seu gênio. Talvez não seja possível, afinal.

Godard Cinema

Histórias do Cinema

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