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Guerra do Iraque

Como 'American Life' de Madonna virou ícone de músicas antiguerra

Fracasso no lançamento, disco chega aos 20 anos com status cult graças às críticas a conflitos armados e ao sonho americano

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São Paulo

Madonna já viveu muitas vidas. Foi a noiva tocada pela primeira vez como uma virgem. A pecadora dançando em frente a cruzes flamejantes. A encarnação da ambição loira trajando sutiã em formato de cone. Ela foi gueixa, bruxa, vaqueira e dominatrix. Naquele 2003, porém, ela decidiu virar guerrilheira e lançar o disco "American Life", obra que colocou sua carreira de ponta-cabeça.

O título de álbum mais controverso da cantora é motivo de disputa. "Like a Prayer", de 1989, enfureceu a Igreja Católica. "Erotica", de 1992, deixou os puritanos boquiabertos com versos que são uma ode ao sadomasoquismo e ao sexo oral feminino. No entanto, "American Life", lançado há 20 anos, marca a primeira vez em que Madonna se viu obrigada a censurar o próprio trabalho.

Capa de 'American Life', disco da cantora Madonna que completa 20 anos - Reuters

O álbum começou a ser gravado no final de 2001, momento no qual o belicismo americano havia ganhado fôlego novo depois do 11 de Setembro. À época, o então presidente George W. Bush (2001-2009) decidiu lançar o que seria conhecido como guerra ao terror, iniciativa que culminaria na invasão do Iraque, em março de 2003.

Descontente com os rumos dessa política externa, Madonna planejava transformar o clipe da faixa-título do "American Life" em um manifesto antiguerra. No vídeo, ela usa como alegoria um desfile de moda para denunciar a espetacularização dos conflitos armados.

Sobre a passarela, desfilam soldados em desespero, homens com corpos dilacerados e uma muçulmana com o hijab em chamas. Enquanto a tragédia se desenrola, a plateia gargalha e aplaude como quem assiste a um programa de comédia.

Para arrematar, Madonna invade a passarela trajando uniforme militar e boina a lá Che Guevara e joga uma granada contra um sósia do presidente George W. Bush. O que foi concebido para ser uma crítica à violência se tornou uma crise de imagem.

Previsto para ser lançado em abril, poucas semanas após a Guerra do Iraque começar, o vídeo acabou sendo censurado pela própria artista por medo da reação negativa. Em uma nota, ela argumentou que o clipe foi gravado antes de a guerra ser deflagrada e que não o considerava apropriado para aquele momento.

"Não quero correr o risco de ofender quem possa interpretar mal o significado deste vídeo", afirmou ela. Os temores de Madonna não eram infundados.

À época, a investida militar contra o Iraque era aprovada por 72% dos americanos, segundo dados do instituto Gallup, empresa global de análise e consultoria. O presidente Bush desfrutava de semelhante popularidade e era aprovado por 71% da população.

Diante do clima de beligerância e de patriotismo exacerbado, artistas que se levantassem contra o conflito eram alvos de retaliação.

Foi o que aconteceu com a banda country Dixie Chicks após uma das vocalistas afirmar que tinha vergonha de ser conterrânea do presidente Bush. A reação foi virulenta. Elas foram banidas das rádios, tachadas de traidoras e ameaçadas de morte.

Àquela altura, Madonna já havia enfrentado a caretice, o machismo e a intolerância, mas capitulou diante do ufanismo.

Com medo da opinião pública, retirou das emissoras o clipe incendiário. Em seu lugar, lançou uma versão esterilizada e de baixo orçamento do vídeo original. No novo registro, ela interpretava a música enquanto bandeiras de diversos países eram exibidas em um chroma key. A mudança, porém, não surtiu efeito.

Biógrafa da artista, Lucy O’Brien escreveu que ela desagradou a todos. De um lado, quem apoiava Bush não considerou a alteração suficiente para desfazer a má impressão. Do outro, fãs contrários à guerra se decepcionaram com a autocensura de alguém que era conhecida pela coragem.

A controvérsia contaminou o desempenho comercial do álbum. À época, o "American Life" se tornou o disco menos vendido de sua carreira.

O desempenho medíocre também pode ser atribuído às críticas ao sonho americano, ideia arraigada na cultura dos EUA segundo a qual todos podem alcançar o sucesso e a riqueza. Na faixa-título, Madonna fustiga o desejo pela realização a todo custo e se pergunta se precisa mudar de nome ou perder peso para ser uma estrela.

Em outro verso, a cantora confessa que tentou ser a melhor e falhou. "É por isso que escrevi essa música. Esse tipo de vida moderna é para mim?" Os questionamentos continuam na faixa seguinte.

"Hollywood" descreve a capital do cinema de forma idílica, quase como um paraíso na Terra. "Como um lugar tão bonito poderia machucar alguém?", pergunta ela. Por óbvio, trata-se de uma ironia, recurso que permeia a carreira de Madonna e que explica boa parte de suas controvérsias.

Em "I'm So Stupid", a crítica é menos inteligente e um tanto mais pueril. A artista repete que todos são estúpidos, inclusive ela, e que costumava viver em um sonho distorcido. Em "Nobody Knows Me", diz que não é bom ser incompreendida, mas que não se importa com a opinião alheia. "Não vou deixar um estranho me passar doenças sociais."

Na melancólica "Mother and Father", Madonna revisita a morte da mãe e a relação conturbada com o pai. Nos versos, ela canta que houve um tempo em que foi feliz e no qual rezava para Jesus Cristo.

A impressão que se tem ao ouvir o disco é a de que o sonho americano virou uma realidade enfadonha. Aqui, a vida é desprovida de glamour e repleta de fracassos, elementos que pouco lembram a biografia de Madonna.

A cantora nasceu em uma família pobre do Michigan, decidiu se mudar para Nova York no início da vida adulta, onde diz ter chegado com apenas US$ 35 e dois sonhos –fama e fortuna. Passou fome e privações, mas realizou ambos os desejos antes dos 30 anos.

Ao se apoiar nessa narrativa, é como se Madonna tentasse ser uma versão feminina do "self-made man", o mito do homem que vence na vida por esforço próprio.

Talvez seja uma forma de gerar identificação ao se vincular a valores caros a seu país, como ambição, individualismo e ética do trabalho. Em um movimento ambivalente, ela critica o sonho americano, enquanto almeja personificá-lo.

Uma evidência disso está em "Easy Ride", faixa na qual canta que quer uma vida boa, mas não quer um caminho fácil. "O que eu quero é trabalhar para isto. Sentir o sangue e suor na ponta dos meus dedos."

Em meio a assuntos sérios, "American Life" ganha ternura com as baladas românticas "Nothing Fails", "Love Profusion" e "X-Static Process". É verdade que são canções pouco memoráveis, mas cumprem bem o papel de dar um respiro ao ouvinte entre uma música de protesto e outra.

Em "Intervention", Madonna se permite ser vulnerável ao abordar as complicações que teve durante o parto de Rocco, seu filho com o cineasta Guy Ritchie. Com a voz cheia de doçura, ela diz querer salvar a vida de seu filho e que o amor os manterá unidos.

O ponto mais baixo do álbum está em "Die Another Die", tema do filme "007 -Um Novo Dia Para Morrer". Sem conexão com as outras músicas, a canção soa como uma obra feita por encomenda que foi enfiada de qualquer jeito no CD. Não faria falta se fosse excluída.

O álbum está longe de ser o predileto dos fãs e dos críticos. Na verdade, ele é ofuscado por obras superlativas como "Erotica", "Like a Prayer" e "Ray of Light". O disco, porém, se mantém relevante não só porque o mundo continua a testemunhar o horror causado pela guerra, a exemplo do que ocorre na Ucrânia.

A força de "American Life" repousa em sua capacidade de sintetizar características que tornaram Madonna um ícone da música pop. É um álbum ousado, ambicioso e cheio de insolência.

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