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Mauricio Stycer

Linha Direta repete tom grotesco do original e alimenta medo do público

Nova versão do programa da década de 1990 mantém cenas canhestras de simulação de crimes com trilha sonora dramática

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Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

A apelação, a baixaria e o grotesco estão presentes na televisão brasileira desde os seus primórdios, ainda na década de 1950. Quadros de namoro e casamento, atrações ao estilo "Esta É a Sua Vida", humorísticos e programas de auditório sempre flertaram com o mau gosto e o sensacionalismo.

Mas, de todos os tipos de apelação na TV, o que sempre provocou mais preocupações e danos foram as experiências de mistura de jornalismo com entretenimento. Do pioneiro Jacinto Figueira Júnior, o Homem do Sapato Branco, na década de 1960, a Luiz Bacci, nos dias atuais, a informação apresentada em chave de espetáculo tem causado variados danos, de arranhões na credibilidade dos veículos à disseminação de pânico entre os espectadores.

Bastidores das gravações do novo Linha Direta com Pedro Bial
Bastidores das gravações do novo Linha Direta com Pedro Bial - Fabio Rocha/Divulgação

Esse "telejornalismo dramático", como caracterizou a pesquisadora Ligia Lana em "Para Além do Sensacionalismo", exibe entre os seus piores exemplos o programa Linha Direta, criado em 1990 por Helio Costa e relançado nove anos depois pelas mãos do diretor de novelas e shows Roberto Talma em parceria com o jornalista Marcelo Rezende.

Baseado na simulação de crimes (teatro) e associando a sensação de insegurança do cidadão comum à incompetência da polícia e à inoperância da Justiça, como mostrou o pesquisador Kleber Mendonça, Linha Direta se tornou o mais célebre exemplo de espetacularizaçao da violência na TV.

Só na aparência, porém, o programa nasceu com o nobre objetivo de criticar e aperfeiçoar as instituições do Estado, observa Mendonça no livro "A Punição pela Audiência" —e Marcelo Rezende confirma em suas memórias ("Corta Pra Mim").

Na realidade, o Linha Direta foi repaginado em 1999 devido à necessidade de recuperar a audiência que a Globo havia então perdido para o sensacionalista Ratinho, no SBT.

Aquele é um período de grandes transformações, com migração das classes A e B para a TV por assinatura e de menos fidelidade à Globo pelas classes mais populares.

Coincidentemente, o relançamento do Linha Direta, que foi ao ar nesta quinta-feira, também parece uma resposta às muitas transformações nos hábitos de ver TV nos últimos dez anos, em especial uma fuga dos espectadores da TV aberta rumo ao YouTube, TikTok, plataformas de streaming e outras formas de consumir programas de true crime. Mas é claro que isso não foi dito.

Oficialmente, a atração retorna com objetivos nobres: "Não é um programa sobre crimes. É importante a gente discutir a violência, discutir o Brasil", prometeu a diretora Monica Almeida antes de exibir por 50 minutos uma mera reconstituição de um crime famoso.

Como anunciou o novo apresentador, Pedro Bial, os objetivos do programa continuam exatamente os mesmos da década de 1990: "Grande parte da população vive um dia a dia de insegurança extrema e, assim como o medo está presente na vida de grande parte dos brasileiros, também há a frustração pela Justiça não realizada".

Em outras palavras, o programa retorna para alimentar o medo do público, com cenas canhestras de simulação de crimes com uma trilha sonora dramática. Com todo respeito, isso é tudo menos jornalismo.

Julia Daltro em gravação da reconstrução do caso Eloá - Divulgação

O novo velho Linha Direta abusou deste recurso na interminável reconstituição do caso Eloá. Ao final, por poucos minutos, houve algum espaço para reflexão crítica sobre os erros da polícia e da imprensa no episódio.

Mas, aparentemente com receio de ferir suscetibilidades, o mesmo Bial que prometeu "rigor, cuidado e honestidade para fazer o melhor para honrar a sua confiança", não informou ao público o nome da apresentadora de TV (Sonia Abrão) que se colocou na função de negociadora do caso.

A Globo aposta na lembrança difusa que o espectador guarda da antiga e bem-sucedida atração, mas limpando-a de suas principais impurezas. Ao final, volta a oferecer ao público a oportunidade de denunciar um foragido, acusado de um crime violento.

Tudo embalado por um discurso polido e bem-intencionado: "A volta de um programa que fez muito sucesso no passado e que agora, depois de 15 anos fora do ar, volta modernizado, atualizado, cumprindo o papel social que a gente acredita cumprir", disse Bial.

É uma iniciativa difícil de entender, até por que a emissora tem condições de fazer programas jornalísticos sobre casos policiais com qualidade muito maior. A opção pelo resgate do Linha Direta parece mais um caso em que a história se repete como farsa.

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