Descrição de chapéu
Livros indígenas

'A Repetição' traça ponte entre indígenas e negros com boas narrativas

Pedro Cesarino, que participa da Feira do Livro, traz duas novelas que exploram o invisível sem cair no léxico da denúncia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luciana Araujo Marques

A Repetição

  • Preço R$ 64,90 ( 144 págs.); R$ 43,90 (ebook)
  • Autoria Pedro Cesarino
  • Editora Todavia

Em "A Repetição", Pedro Cesarino —autor que participa da feira do livro nesta sexta-feira (9)— coloca a palavra e suas ambivalências no centro de uma obra mediadora entre mundos e temporalidades, em que as brutalidades sofridas por povos indígenas e pelos negros capturados pela empreitada escravocrata irrompem envoltas por indagações.

A verdade por trás do que é dito e dos escritos não é algo que se alcança de modo absoluto: não confundir, em tempos de fake news, com a relativização contida na noção distorcida de narrativas como sinônimo de versões sobre um mesmo fato, mas o seu contrário. Porque tratam, sobretudo, do que precisa ser reconhecido em relação às violências sofridas, do que não pode seguir calado.

O antropólogo Pedro Cesarino, autor do livro "A Repetição", da Todavia - Divulgação

Em "O Mentiroso", primeira das duas novelas que compõem o livro, Totanauá tenta transmitir aos seus as palavras que "escuta do papel". Primeiro entre os integrantes de seu povo a ter aprendido a ler e escrever, a relação que ele estabelece com essa habilidade jamais se aparta de um chamado xamânico.

"O livro era mesmo quem?", pergunta-se. Por isso nega-se a ensinar o sobrinho Américo a "ler-ver". Dizia que apenas ele era capaz de falar com a dona dos escritos: "Américo não tinha nome e não podia escutar os cantos, a voz desenhada do corpo dela".

Já em "A Dívida", M. é visitado por duas entidades, que o auxiliam tanto na escuta da dor e angústia das vítimas —familiares e mortos— em um cenário pandêmico-genocida que devora futuros a partir de uma origem de injustiças e crimes muito antigos, contra o qual só reparações podem servir como possibilidade de cura. Passado coletivo intrínseco à genealogia desse velho intelectual desgostoso e solitário.

A leitura, da perspectiva de Tatanauá, se revela uma forma de tocar e ser tocado na própria corporeidade por uma mulher que tem o corpo coberto de letras. Mas os parentes nesta Amazônia fictícia, onde "a floresta estava cada vez mais cansada", desconfiam do que ouvem a partir da revelação de que "jornal, livro, revista! É isso que eles chamam quando põem na frente do olho para pensar!".

Enquanto isso, habita a carne herdada de M. um saber que não se escava nos livros, mas, entre outras formas de registro, em certas memórias e seus apagamentos.

O gênero até autoriza a leitura dessas duas novelas de forma autônoma, mas o fato é que uma das grandes forças de "A Repetição" reside na unidade lapidada em duplos e retornos anunciada nesse título. A relação entre ambas não pode ser perdida de vista, tampouco dos ouvidos.

Não pelos espelhamentos e ecos mais óbvios, mas por aqueles que exigiram do autor um empenho para fazer ver a relevância do invisível e escutar o tanto silenciado em chave que não se confunde com uma livre imaginação nem com o léxico dos discursos da denúncia, embora ela esteja lá.

Sem fissurar a ortografia e gramática legadas pelo colonizador, Cesarino cria em língua portuguesa uma prosa fluida na aparência mas da qual irrompem estranhamentos e uma coleção imagética que se originam do manejo literário dos modos de narrar sobre os quais se debruça como antropólogo, mas não apenas.

Atento às armadilhas da apropriação indevida, o autor traz ao final do volume uma nota de referências e para a escrita de "A Dívida" não só conta com uma imperiosa confirmação extraliterária como pede licença aos ancestrais. Porque há o pesquisador, mas também o sujeito notadamente poeta diante de sua história no interior de uma maior.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.