Descrição de chapéu
Livros

Cormac McCarthy era gênio absoluto em tornar as palavras em paisagens

Livros violentos do autor, morto aos 89 anos, permitiam que o desamparo e a fragilidade surgissem da masculinidade bruta

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Novo Hamburgo (RS)

"O deserto por onde ele cavalgava era vermelho e vermelha a poeira que levantava, o pó fino que empoava as pernas do cavalo que cavalgava, o cavalo que conduzia. À noite levantou-se um vento que avermelhou todo o céu à frente. Cavalgou com o sol acobreando-lhe o rosto e o vento rubro soprando do oeste."

Qualquer um que já tenha lido Cormac McCarthy reconhece seu estilo na passagem acima, extraída do romance "Todos os Belos Cavalos".

O escritor americano Cormac McCarthy
O escritor americano Cormac McCarthy - Beowulf Sheehan/Divulgação

O escritor morreu aos 89 anos nesta terça-feira, de causas naturais, em sua casa na cidade de Santa Fé, no estado americano do Novo México. Ele deixa dois filhos, Cullen e John.

Espécie de esteta do faroeste, a McCarthy não bastaram as cenas de ação ligeiras com rifles disparando, cavalos se apressando e carroças sacolejando. Todos os cenários, muitas vezes desolados, são descritos com uma beleza surpreendente.

Vale lembrar que o próprio subtítulo de "Meridiano de Sangue", um dos melhores e mais conhecidos romances do autor, é "O Rubor Crepuscular no Oeste". E de fato é um subtítulo adequado.

A descrição de uma cavalgada pode ocupar poucas linhas e durar uma eternidade, como se se desenrolasse em câmera lenta. Na prosa precisa do romancista americano, cada mínimo detalhe é visível. A poeira carmim levantando. Um pôr do sol cor de rubi.

Há espaço para todas as nuances de cor em uma paisagem, embora os tons de vermelho sempre, é claro, se sobressaiam. E se toda paisagem externa é, nos livros de McCarthy, de tirar o fôlego, a paisagem interna de seus personagens é igualmente impressionante e aterradora.

Nem todas as suas criações são como o juiz Holden de "Meridiano de Sangue", uma das maiores bestas de toda a literatura mundial, um homem mau de cabo a rabo.

A maior parte desses personagens, que surgem em atmosferas niilistas entre o faroeste e a distopia, são sujeitos tão amedrontados e atormentados quanto durões; muitos são jovens que amadurecem ao longo dos percalços que enfrentam. Ambivalentes, eles se revelam em diálogos lacônicos e —o que é assombroso— ainda assim profundos.

Os personagens do americano Cormac McCarthy se embrenham em buscas, paisagens e disputas que, sem qualquer exagero, e sem perder de vista as dimensões épicas e filosóficas que existem aí, põem o romancista no mesmo patamar de Herman Melville, autor de "Moby Dick". Morto a pouco mais de um mês de completar 90 anos de idade, McCarthy já é um clássico.

O escritor iniciou a carreira como dramaturgo, mas alcançou reconhecimento ao escrever romances. Seus livros geraram adaptações de sucesso para o cinema, como "Onde os Fracos Não Têm Vez", que se tornou vencedor do Oscar de melhor filme sob a batuta dos irmãos Joel e Ethan Coen.

A "Trilogia da Fronteira", como foi apelidada a série formada por "Todos os Belos Cavalos", "A Travessia" e o hoje fora de catálogo "Cidades da Planície", está entre suas realizações mais populares.

McCarthy foi mestre em dar aos seus livros, mesmo os mais brutais, um elemento vagamente inquietante, vagamente de outro mundo.

Há um bocado de violência nos romances do autor, o que, ao lado dos protagonistas um tanto embrutecidos e taciturnos e dos elementos de faroeste, abrem uma atmosfera predominantemente masculina. Mas essa masculinidade é, em McCarthy, também o que possibilita à fragilidade e ao desamparo emergirem.

Mais recentemente, já octogenário, o escritor publicou "O Passageiro" e "Stella Maris", um díptico que encerrou uma carreira brilhante em grande estilo. Nas resenhas, se sobressaíam tanto a confusão quanto o fascínio.

É como se McCarthy tivesse absorvido muito da obra de seus contemporâneos e conterrâneos Don DeLillo e Thomas Pynchon. Junto aos diálogos rápidos e espertos, comuns a seus romances, havia um grande apelo aos bons e maus usos da ciência e da tecnologia, algo mais comum a DeLillo, e um escracho, ou um voo livre da imaginação, mais comum a Pynchon.

O protagonista é Bobby Western, um mergulhador atormentado pelo passado, sobretudo pela perda de sua irmã. A vida dele sai dos trilhos quando é contratado para averiguar um jato que caiu no mar —entre outros detalhes suspeitos, há um passageiro a menos a bordo.

Alguém parece achar que Western tem mais informações do que diz ter, e passa a persegui-lo. McCarthy alterna capítulos do ponto de vista de Western e da irmã, Alicia, uma garota brilhante que tem longas e estranhíssimas conversas com, ao que tudo indica, as vozes em sua cabeça.

Tanto quanto a "Trilogia de Jesus" do sul-africano J.M. Coetzee, o díptico de McCarthy já tem um lugar garantido no panteão das narrativas complexas e difíceis de serem analisadas —e já dá muito em que pensar pelas próximas décadas. Também por isso a partida de McCarthy parece ainda mais triste, quando se considera o que, dada a espécie de virada que o díptico assinalava, ainda poderia vir pela frente —ressalvando que os livros começaram a ser pensados ainda na década de 1970.

Tanto nas descrições cuidadosas seus amados cenários de faroeste quanto nas sombras sinistras do fundo do mar —onde se passam algumas cenas fantasmagóricas do novo díptico—, McCarthy foi um escritor genial.

Dono de uma prosa refinada e elegante mesmo quando o tema em questão era cru e brutal, e de uma visão capaz de alcançar e pincelar todos os recantos, tons, nuances e profundidades, não há ninguém que consiga igualar a capacidade do autor de capturar e de conceber uma paisagem por meio das palavras.

Há que se pensar na cena final de seu premiado "Todos os Belos Cavalos". É uma cena que, sozinha, pode servir não só como o emblema de toda uma obra, mas como uma imagem de despedida.

Nela, saindo de cena, cavalo e cavaleiro "passavam e empalideciam na terra a escurecer, no mundo a vir". Quem sabe galopem de encontro a um belo crepúsculo de sangue enquanto tiramos nossos chapéus em silêncio, um mundo de leitores a vir.

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