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Livros

Cormac McCarthy se mostra grande autor até em livros que fracassam

Díptico recente composto por 'Stella Maris' e 'O Passageiro' é um fiasco que revela escritor disposto a arriscar e a perder tudo

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Stella Maris

  • Preço R$ 59,90 (184 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Cormac McCarthy
  • Editora Alfaguara
  • Tradução Cássio de Arantes Leite

Cormac McCarthy lançou em 2022 dois romances em forma de díptico: "O Passageiro", cuja história se passa no início dos anos 1980, e "Stella Maris", com eventos de 1972. Os seus protagonistas são respectivamente Bobby e Alicia, um casal de irmãos que são também "filhos da bomba", a primeira geração a sofrer o rebote da devastação de Hiroshima e Nagasaki.

No caso, literalmente, pois o pai deles é um dos cientistas do Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica. Para McCarthy trata-se de um evento gêmeo de Auschwitz, assinalando uma era sem futuro.

homem idoso em foto em preto e branco
O escritor americano Cormac McCarthy, autor de 'Stella Maris' e 'Onde os Velhos Não Têm Vez" - Divulgação

Seguindo os passos do pai, ambos se dedicam à ciência —Bobby como físico, Alicia como matemática—, embora cedo se desiludam da atividade em que mostram ser excepcionais. Aliás, são excepcionais em tudo, da música à pilotagem, além de serem incrivelmente atraentes. Desde a família Glass, de J.D. Salinger, não há tanto empenho para criar a sério histórias de gênios.

Deixando a ciência, os irmãos adotam um estilo de vida "on the road", virtualmente suicida. Assim, Bobby se torna um corredor de fórmula dois e sofre um acidente que o leva ao coma. Recuperado, trabalha como mergulhador, envolvendo-se numa trama obscura, na qual passa a ser perseguido por agentes federais.

Já Alicia abandona um estágio prestigioso e passa a rodar por ermos decadentes, carregando consigo apenas um violino Amati caríssimo. Depressão, anorexia e esquizofrenia disputam o butim de seu corpo e cabeça, fazendo com que ela, vez por outra, interne-se voluntariamente em manicômios.

Como o livro "O Passageiro" já foi resenhado, nos concentraremos em "Stella Maris", embora não seja possível falar de um sem pensar no outro.

O romance se passa no ano em que Bobby está em coma. A situação é desesperadora a ponto de proporem o desligamento dos aparelhos, recusado por Alicia. Mas ela não suporta aguardar a morte iminente do irmão e foge dali, dando início a uma viagem ensandecida, sem saber que Bobby se recuperará do acidente.

A essa altura —sem spoiler, pois tudo é revelado no início—, já sabemos que os dois irmãos estavam perdidamente apaixonados um pelo outro desde a adolescência. Dá até para dizer que o díptico compõe um Romeu e Julieta incestuoso, pois quando um desperta do coma, o outro já se suicidou como entrega amorosa definitiva.

Contado assim, trata-se de uma tragédia amorosa face a um tabu de costume e moral. Ocorre que essa tragédia fica apenas latente na narrativa, projetando-se sobre as mais avançadas teorias da matemática e da física contemporânea, que estão em primeiro plano. São elas que exaurem os dois romances, sem exceção das sete sessões de análise de Alicia no manicômio, das quais "Stella Maris" é a transcrição.

Ou seja, o drama do incesto é transferido para a crítica dos fundamentos da matemática. E vice-versa: a crise da matemática recalca (e amplifica) o desejo não consumado dos irmãos. O amor que os assombra está contaminado pela irradiação que gerou a bomba assassina do pai.

Nessa projeção quântico-afetiva, a impossibilidade amorosa é tão certa como a destruição da vida. Algo de podre ronda o amor mais genuíno, como um demônio escondido nas fórmulas matemáticas.

Na teoria é interessante. Ocorre que, por mais que tenha passado horas a ouvir os cientistas do Santa Fe Institute, onde fez residência, McCarthy não tem como nos convencer dos cálculos a que alude, pois o que faz é apenas narrativa mitológica: um "name-dropping" de cientistas conjugado a uma lista de problemas abscônditos.

Mesmo as sessões de análise de Alicia, que poderiam ser fantásticas —e as três últimas são ótimas—, ficam comprometidas pela afetação de genialidade, que parece cortina de fumaça para o drama do incesto, contaminando-o com o seu tom postiço.

A rigor, portanto, o díptico é um fiasco, sem ser indício de decadência de McCarthy. Ao contrário, parece que, com quase 90 anos de idade, ele ainda está disposto a arriscar alto e a perder tudo. Paradoxalmente, o grande escritor respira bem enquanto o romance afunda.

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