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Peça de Lee Blessing analisa os danos da polarização política no âmbito familiar

'Vista para as Montanhas' retoma personagem idealista de 'Um Passeio no Bosque' depois de quase três décadas

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São Paulo

Não tivesse a polarização das eleições de 2018 causado um racha permanente na vida de grupos familiares ao redor do Brasil, talvez o ator e produtor Beto Bellini não tivesse a urgência de pôr em cena "Vista para as Montanhas", texto do dramaturgo americano Lee Blessing que narra um encontro entre pai e filho cindidos também por um discordâncias ideológicas.

Cena de montagem de 'Vista para as Montanhas', peça de Lee Blessing
Cena de montagem de 'Vista para as Montanhas', peça de Lee Blessing - Lucas Carduz/Divulgação

Isso porque, para o ator, há um gosto pessoal em levar a discussão para os palcos, uma vez que sua própria relação com um dos filhos, policial militar, foi abalada a partir do momento em que a família se posicionou em espectros políticos diferentes.

"Fui um estudante de teatro que aprendeu com os grandes e construí um caminho mais à esquerda, contra toda essa invasão do fascismo da extrema direita. Mas houve uma grande lavagem cerebral por meio de grupos de WhatsApp, e esse texto dá brechas para um diálogo, porque ele chega a um lugar extremo", diz.

Na história, o ex-diplomata John marca um jantar com o filho de seu primeiro casamento, com quem rompeu há muito tempo. Idealista de esquerda e filiado ao partido Democrata, John vê seu filho crescer como um proeminente senador republicano que se prepara para concorrer à vaga de vice-presidente do país.

De posse de uma carta que pode comprometer a candidatura do filho, o diplomata o ameaça, e a tensão faz com que a dupla entre em conflito. Sob a direção de Pedro Granato, a montagem busca discutir as dores causadas pela polarização dentro do seio familiar, ainda que não apresente uma resolução para o problema.

"Precisávamos ser muito duros, muito contundentes na luta pela defesa da democracia e da vida, agora já podemos começar a olhar um pouco todos os estragos que foram causados, principalmente na esfera íntima. É o momento perfeito para esse espetáculo, porque está todo mundo olhando para o que ficou arranhado nas relações, o que é muito mais profundo e difícil de lidar", diz o diretor.

Escrito em 2014, o espetáculo ganhou sua primeira montagem nos Estados Unidos antes das campanhas de Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas já reverberando os sinais de que havia uma cisão prestes a se aprofundar não apenas na sociedade americana, mas ao redor do mundo, muito parecido com outro espetáculo, também assinado por Blessing, que antecede "Vista para as Montanhas."

Encenado originalmente há 35 anos, "Um Passeio no Bosque" flagra o encontro de dois diplomatas na Suíça em meio a uma iminente guerra nuclear entre Rússia e Estados Unidos, para discutir um acordo de cooperação entre os dois países. Eles eram o russo e cético Botvinik e o americano e idealista John, o mesmo que protagoniza o novo espetáculo.

No Brasil, Bellini, o produtor, dá um gosto de continuidade à montagem, uma vez que fez parte das duas encenações do texto de 1988. A primeira, em 2000, ao lado de Emílio Di Biasi, quando deu vida ao jovem idealista, e a segunda, em 2019, quando viveu o cético russo. Esta última montagem compõe o díptico teatral montado pelo ator no palco do Teatro Cacilda Becker.

"As duas peças juntas formam o propósito da representação no conceito shakespeariano da coisa. É mostrar nossos escárnios e nossas virtudes para que possamos analisar os escárnios e potencializar as virtudes", diz o ator, que divide a cena com Gustavo Merighi, Samya Pascotto, Pedro Miranda e Lena Roque, que, na pele da mulher de John, incute certa racialização na temática do espetáculo.

Escrita para uma atriz branca, a personagem Isla ganha outros contornos em diferentes passagens, como quando o jovem republicano se refere a ela como "exótica". "Já tem ali uma transformação. Olhamos já para esse recorte racial preconceituoso", afirma Roque.

A atriz, contudo, não acredita que haja uma verticalização do assunto, uma vez que não é este o assunto da peça e ela sozinha em cena não seria capaz de promover o processo todo. "Só eu não dou conta de discutir isso. É uma presença negra e seria loucura achar que daria conta, mas traz outra camada para esta narrativa."

'Vista para as Montanhas' e 'Um Passeio no Bosque'

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