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Enigmática, Astrud Gilberto viveu cercada da fina flor do jazz mundial

De voz sexy e precisa, cantora que levou a bossa nova ao mundo passou por dificuldades depois de se separar de João Gilberto

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Rodrigo Faour

A voz suave, solar e climática de Astrud Gilberto sempre foi pano de fundo nas salas de estar, bares, restaurantes, aeroportos, cenas de romance em filmes e onde mais pudesse haver delicadeza e glamour nos quatro cantos do planeta. Afinal, seu maior feito, nem sempre creditado, foi seu protagonismo na internacionalização da bossa nova, nossa maior música de exportação —essa mesma que o Brasil sempre insistiu em menosprezar e os gringos das mais variadas vertentes, do jazz ao rock e hip-hop, de várias gerações— em valorizar.

a cantora Astrud Gilberto posa para foto, em São Paulo, em julho de 1965
A cantora Astrud Gilberto posa para foto, em São Paulo, em julho de 1965 - Acervo UH/Folhapress

Fato é que Astrud estava na hora certa, no lugar certo —no estúdio em que João Gilberto, Tom Jobim e Stan Getz gravavam o álbum que lançaria, entre outras bossas, a "Garota de Ipanema". Na falta de alguém que a cantasse em inglês, ela se ofereceu.

Sim, porque, filha de um professor de línguas, era poliglota. Além do português, falava italiano, francês, espanhol, japonês e o inglês. Revelou-se então uma voz charmosa, ideal para os versos da menina que passava num doce balanço a caminho do mar de Ipanema.

Mas a gravação passou de cinco minutos, daí o produtor Creed Taylor, encantado pelo efeito de sua voz, editou um single apenas com a parte dela e do sax de Getz, tirando a abertura cantada por João.

Resultado: foi eleita a gravação do ano e melhor performance vocal feminina pelo Grammy (que também premiou o álbum), e da noite para o dia Astrud foi içada ao posto da verdadeira "Garota de Ipanema" e símbolo sexual aos olhos e ouvidos do mundo.

Muito se fala, com justiça, dos créditos de Tom & Vinicius e de João para o êxito da bossa nova e desta canção no planeta, tida como a segunda mais gravada do mundo, com mais de 1.500 versões nas mais variadas línguas, mas naquele bolo que consagrou mundialmente a moderna música brasileira tinha uma cereja: Astrud. Sortuda, sem dúvida.

Mas, o que a cantora ganhou com seu lançamento? Duas cocadas e uma mariola, ou seja, só a tabela do sindicato e nada de créditos no álbum. Antevendo o sucesso, Stan Getz, inescrupuloso, ainda teria ligado para o escritório do produtor Creed Taylor para assegurar que ela não teria direito mesmo a nada pela gravação.

Este foi o primeiro dos revezes que passou. Naquele mesmo ano, o casamento com João Gilberto acabava, após ela ter descoberto uma traição da parte dele e, em dificuldades financeiras e um filho pequeno para criar, precisava iniciar uma carreira solo, no grito, ou melhor, no sussurro.

Vieram um concerto no Café Au Go Go, em Greeenwich Village, com Getz; aparição no filme "Get Yourself a College Girl", da MGM e, a gravação do primeiro de nove álbuns solo para a Verve, incluindo o definitivo "The Astrud Gilberto Album" (1965), com o piano de João Donato e Tom no violão, "Beach Samba" (1966) e "A Certain Smile, a Certain Sadness", com Walter Wanderley (1967).

Trabalhou nesse tempo também com Quincy Jones em "Who Needs Forever", tema do filme "Chamada Para um Morto", de Sidney Lumet (1966). Depois fez parcerias com Stanley Turrentine e Eumir Deodato (num LP e 1971), James Last (noutro, em 1987), com o cantor francês Étienne Daho (em 1996) e mitos do jazz, como Chet Baker (na faixa "Far Away", de seu álbum de 1977), um de seus ídolos de infância ao lado de Barney Kassell e Gerry Mulligan.

Em 1996, convidada pelo popstar George Michael, gravou "Desafinado" para o projeto "Red Hot + Rio", a última de maior repercussão mundial, época em que passou a diversificar ainda mais seu som. Seus dois derradeiros álbuns, "Temperance" (1997) e "Jungle" (2002), se revelava compositora em quase todas as faixas.

Astrud era tida como uma artista de temperamento difícil e arredia a entrevistas. Mas, na verdade, era tímida e, acreditando na palavra dos outros, voltou a gravar outros LPs sem que recebesse créditos de produtora ou mesmo de remunerações corretos, como nos discos "Now" (1972) e "That Girl from Ipanema" (1977).

Também não era informada das inúmeras compilações de sua obra que corriam o mundo. No Brasil, após perseguição da imprensa nacionalista no início da carreira e boatos de que era a culpada pela separação com João Gilberto e até de que teria tido um caso com Stan Getz, nunca mais voltou a se apresentar no país, a não ser uma pequena participação no "Show nº1", no Theatro Municipal do Rio, com Tom e João, em 1992.

À certa altura, um ano depois de seu último show, justo em 2002, quando teve seu nome inscrito no Hall of Fame internacional da Música Latina, em Nova York, ela se retirou de cena. Em 2008 ainda viria um Grammy Latino a homenageando pelo conjunto da obra, mas nesse tempo já vivia anônima na Filadélfia, dedicada a estudos de filosofia, à pintura e apoiando campanhas contra os maus tratos dos animais. Mas a voz pequena, com a divisão precisa e sexy, sempre cercada da fina flor do jazz mundial e um repertório de ponta, esta já era eterna mesmo antes de se isolar e partir.

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