Descrição de chapéu Artes Cênicas

Grupo Tapa pensa misoginia de Strindberg com homem em dúvida na peça 'Credores'

Clássico do autor sueco foi escolhido para comemorar 44 anos da companhia, que tenta sobreviver a partir das bilheterias

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São Paulo

Em uma sauna, dois homens seminus conversam sobre a esposa de um deles. Além de escritora, ela é totalmente independente, fato inusitado para o final do século 19.

O casado é pintor e portador de uma doença que limita o movimento de suas pernas. Ele admite padecer de um vazio terrível quando sua mulher está longe. Enquanto isso, o homem mais velho tenta convencê-lo de sua superioridade em relação à mulher.

Ator Bruno Barchesi em 'Credores', de August Strindberg
Ator Bruno Barchesi em 'Credores', de August Strindberg - Ronaldo Gutierrez/Divulgação

Além do matrimônio, eles refletem sobre a decadência da pintura frente à escultura, capaz de representar três dimensões —um diferencial se comparada à fotografia, recém-descoberta. Os corpos suados, envoltos em toalhas brancas, remetem à estatuária greco-romana, quase materializando a discussão.

O casado, então, mostra uma estátua de gelo que fez para representar sua amada. Está sem rosto.

Em determinado momento, Gustavo, interpretado por André Garolli, agarra Adolfo, papel de Bruno Barchesi, pelo colarinho e o obriga a tentar andar sem muletas. "Eu não consigo, sou apenas uma criança!" implora o mais jovem, antes de cair violentamente.

A segunda parte da peça "Credores", em cartaz no Galpão Tapa, inicia com a chegada de Tecla, a esposa de Adolfo, ao hotel. Gustavo promete ajudar o amigo a desmascarar a mulher, após convencê-lo de que ela estaria se aproveitando do afeto para sugar seu talento artístico.

O que parece apenas um confronto entre marido e mulher torna-se uma discussão quase existencialista —e angustiantemente sem solução— sobre desejar e perceber o outro no mundo.

Não por acaso, os textos de August Strindberg, autor da peça, foram objeto de análise do filósofo Jean Paul-Sartre e chegaram a inspirar o cineasta Ingmar Bergman. Ao lado de Henrik Ibsen, Strindberg foi expoente do teatro escandinavo no final do século 19.

Filho de um pai rico e de uma governanta, as primeiras obras de Strindberg destrincham, com certa amargura, a impossibilidade de relação entre pessoas de classes econômicas diferentes. Após o fim de seu casamento, seus escritos assumiram um tom misógino —motivo pelo qual é, até hoje, considerado polêmico.

O escritor e dramaturgo August Strindberg, em 1886
O escritor e dramaturgo August Strindberg, em 1886 - Acervo da Biblioteca Nacional da Suécia

"Credores", de 1888, está inserido no momento naturalista do dramaturgo. A montagem incentiva a crítica ao olhar masculino, que domina a primeira metade do espetáculo.

"A sauna é um espaço comum no mundo escandinavo. Aqui ela é purgatório da relação amorosa", diz o diretor, Eduardo Tolentino. "É evidente que os personagens são misóginos. Mas quando os colocamos em cena, somos capazes de criar indignação quanto a isso".

Em contraponto ao amargor de Adolfo, Tecla invade o palco com euforia. Ela não nega ao marido que gosta de flertar com outros homens mais jovens e, quando ele expõe sua frustração, ela se recusa a limitar suas experiências boêmias, o que cresce a tensão entre o casal.

Adolfo parece se apoiar na ideia de que criou Tecla, representada na estátua em cena. Ele também se coloca como motivo do sucesso da mulher por tê-la incentivado a escrever.

Quase como o Bentinho de Machado de Assis, quanto mais Adolfo deseja Tecla, mais se sente enganado. Para o psicanalista Christian Dunker, Adolfo e Gustavo representam o lado fraco e forte de uma mesma pessoa.

"São duas vozes que representam o jogo interno da consciência. É como se estivéssemos vendo nosso próprio funcionamento", diz. A análise é realçada por dois espelhos, colocados frente a frente em lados opostos do palco.

Tecla, então, confronta o desejo de Adolfo, que esperava outro comportamento da amante moldada. O embate leva a uma trama estilo "O Médico e o Monstro", entre momentos de paixão e raiva. "A chave não está em pensar que amor e ódio são feitos da mesma matéria-prima, mas no ponto de inversão entre os dois sentimentos", conclui Dunker.

O grupo Tapa encena o texto de Strindberg há 12 anos. A nova versão é especial por celebrar os 44 anos da companhia teatral paulistana – que resiste em meio à crise financeira enfrentada pelo teatro independente na capital.

"Hoje o Tapa é estruturado em satélites. Não dá para se manter como companhia, não tem como pagar as pessoas para que fiquem", diz Garolli. O financiamento é o principal entrave para estruturar uma companhia de teatro em sua forma original, com repertório próprio, onde artistas estudam e trabalham, segundo ele.

Para Tolentino, um dos fundadores do Tapa, o Brasil adotou um "modelo perverso" para o teatro. "Existem verbas públicas, mas elas são um falso fomento. Você fomenta uma coisa quando ela consegue andar com as próprias pernas", diz.

O diretor argumenta que o teatro é muito dependente dos editais governamentais, como o Proac em São Paulo, que não tem verbas suficientes para a quantidade de projetos existentes.

No caso de "Credores", uma porcentagem das vendas irá ao elenco e o resto será para pagar os custos de produção da peça. Além dos editais públicos e os valores de bilheteria, o Tapa se sustenta através de cursos e oficinas para a formação de atores.

O revezamento entre preços baixos e sessões gratuitas estaria impedindo o retorno financeiro de um público que poderia pagar pelo ingresso e, como consequência, minando a capacidade das companhias de viver da bilheteria.

"A gratuidade para bairros populares é uma coisa diferente. Além das sessões a preços populares, é preciso criar um mecanismo que leve as pessoas ao teatro, que precisa andar sem subsídio", defende Tolentino.

Felipe Souza, o mais jovem a compor o elenco, estava trabalhando de garçom pouco antes de iniciar os ensaios para "Credores". "Estou buscando outros trabalhos. Viver só de teatro é impossível", lamenta.

A experiência ajudou a construir seu personagem, um camareiro que presencia a degradação do casal enquanto os serve. "O ser humano é digno de lástima", constata, ao encerrar o enredo.

Credores

  • Quando Até 30/7. De quinta a sábado, às 20h. Domingo, às 18h. De 31/7 até 28/8, seg., às 20h
  • Onde Galpão Tapa. Rua Lopes Chaves, 86, Barra Funda.
  • Preço Quinta e sexta R$50. Sábado e domingo a R$60.
  • Classificação 14 anos
  • Autoria August Strindberg
  • Elenco André Garolli, Bruno Barchesi, Felipe Souza e Sandra Corveloni.
  • Direção Eduardo Tolentino
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