Ao ser convidado de última hora para participar do programa de entrevistas The Dick Cavett Show em 1971, o escritor William Petter Blatty foi informado ao vivo de que o apresentador não tinha lido seu romance, "O Exorcista", recém-lançado e pouco vendido.
"Posso falar dele para vocês?", perguntou Blatty de pronto, antes de disparar a descrever o livro por 40 minutos à imensa audiência que o via. Em duas semanas, "O Exorcista" saiu do fundo de estante da editora Bantam Books para conquistar o topo dos mais vendidos no jornal The New York Times, com direitos de adaptação vendidos à Warner.
Dois anos depois —e meio século atrás—, chegava aos cinemas dos Estados Unidos um dos filmes mais aterrorizantes, dramáticos e influentes já feitos em Hollywood.
No livro de memórias "The Friedkin Connection", inédito no Brasil, o cineasta William Friedkin, morto nesta segunda-feira (7), que assina a direção do filme e fez contribuições significativas ao roteiro original do próprio Blatty, relembra o interesse das plateias em assistir a um produto como "O Exorcista" naquele momento.
Em 1969, um massacre coordenado por Charles Manson provocara a morte da atriz Sharon Tate, grávida do diretor Roman Polanski. A barbaridade derrubou as falsas paredes de inocência no imaginário da indústria de cinema em Los Angeles.
Outro caso rumoroso, o litígio judicial conhecido como Roe vs. Wade, que deu a uma mulher do Texas direito ao aborto, é citado por Friedkin ao relembrar do que trata seu filme. "Em ‘O Exorcista’, o corpo de uma menina não é apenas violado. Ele é invadido pelo demônio. Aqueles eventos foram parte do debate público enquanto ainda estávamos filmando."
"O Exorcista" foi uma revolução pelos aspectos estéticos e pelo sucesso sem precedentes de um filme de horror realizado com alto orçamento por um grande estúdio —US$ 60 milhões em valores reajustados. Friedkin vinha da experiência com documentários e ficções obscuras, como "Os Rapazes da Banda", de 1970.
Seu nome foi sugerido por Blatty diretamente à Warner, mas o estúdio estava reticente. Isso mudou com a estreia de "Operação França", de 1971, thriller policial ganhador de cinco estatuetas do Oscar, entre elas a de melhor filme e direção para Friedkin.
O realizador levou a "O Exorcista" o estilo seco, cru e objetivo de "Operação França", aproximando intimamente o espectador da tragédia vivida por Chris McNeill, interpretada por Ellen Burstyn. Nunca um filme de horror aplicara com tamanha eficácia a sensação "documental" do relato através daquele tipo de precisão ficcional.
Aos 37 anos, Friedkin era notoriamente um obcecado e perfeccionista, a ponto de protagonizar comportamentos tóxicos no set, como detalha o jornalista Peter Biskind em "Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock'n'roll Salvou Hollywood", o melhor livro de fofocas sobre a turma da chamada nova Hollywood.
As imagens de possessão da menina Regan, interpretada por Linda Blair, estrebuchando na cama, xingando, agredindo, vomitando e se mutilando com um crucifixo se tornaram parte da cultura pop.
Para além delas, "O Exorcista" é um primor de construção detalhada. O filme é conduzido entre dúvidas e angústias intercaladas a momentos de tensão sobre a real condição da garota e do padre Damien Karras, papel de Jason Miller, cuja jornada de questionamento espiritual é igualmente tratada em minúcias.
A Warner ficou abalada com o teor provocador do filme e o lançou em menos de 30 salas, sem exibições prévias, no final de 1973.
Imediatamente filas enormes se formaram nos cinemas e começou a circular todo tipo de notícia envolvendo espectadores apavorados, gente passando mal nas sessões e ambulâncias chamadas para socorrer pessoas em pânico. Por alguns meses, "O Exorcista" foi o filme mais comentado em todo o país.
A bilheteria de US$ 1 bilhão reajustada foi tão acima de qualquer expectativa, que a indústria se deu conta de que filmes de medo podiam engajar e render. As dez indicações de "O Exorcista" ao Oscar reforçaram a percepção. Foi inclusive o primeiro título de horror indicado ao prêmio de melhor filme.
Quando decidiu encomendar uma continuação, a Warner notabilizou a famigerada e muitas vezes interminável cultura das franquias de terror, até hoje um dos carros-chefe do gênero.
"O Exorcista" teve três sequências —de 1977, 1990 e 2004—, nenhuma com William Friedkin, e uma série de TV de 20 episódios, exibidos em 2016 e 2017. Um quarto filme vai estrear em outubro deste ano, dirigido por David Gordon Green, que há cinco anos revitalizou outra franquia famosa, "Halloween".
O novo capítulo promete retomar a família McNeill, ambientando a trama justamente 50 anos depois do original.
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