Descrição de chapéu indígenas

Manto tupinambá inflama debate sobre repatriação de relíquias históricas ao Brasil

Museu Nacional do Rio de Janeiro receberá a veste indígena de 400 anos como doação da Dinamarca para evitar polêmicas

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São Paulo

Para que um manto seja tecido pelos indígenas tupinambás, o território precisa estar em calmaria. Com um fio de algodão selado por cera de abelha, que confere resistência à peça, penas de diferentes pássaros são costuradas juntas.

Manto tupinambá que a Dinamarca vai devolver ao Brasil
Manto tupinambá que a Dinamarca vai devolver ao Brasil - Roberto Fortuna/Divulgação

Algumas são colhidas pelas crianças que, curiosas, as procuram pelo chão da aldeia. Ali, Glicéria Tupinambá, ativista e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, costura as vestes sagradas usando um fio único junto ao fuso, sem agulha. "O manto envolve várias pessoas e vários saberes", ela diz.

Há dois anos, a última veste que fez contou com 3.500 penas e demorou quatro meses para ser tecida. Os novos mantos despertam um saber que estava adormecido pela distância entre os tupinambás e as vestes sagradas de seus ancestrais, todas hoje na Europa.

Agora, com pouco mais de um metro de comprimento por 60 centímetros de largura, o manto tupinambá confeccionado no século 17 com penas de guará, pássaro de coloração vermelha que habita o litoral brasileiro, voltará ao Brasil.

Será recebido e guardado no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ainda em reconstrução desde o incêndio que consumiu dois terços de sua coleção há cinco anos. A peça foi doada pelo Nationalmuseet, em Copenhague, onde ela estava desde 1689.

"Receber esse manto é uma enorme responsabilidade", diz Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, que assumiu a instituição seis meses antes do fogo. "Precisei dar garantias aos curadores."

Entre os cuidados técnicos, está o modo de conservação e exposição, visto que a incidência da luz pode contribuir para o desbotamento das penas rubras. Junto deles, o acompanhamento simbólico e espiritual por parte dos indígenas foi posto como prioridade.

A tecelagem de mantos era praticada havia séculos e foi interrompida conforme o avanço da colonização e dominância sobre os tupinambás, os primeiros indígenas a ter contato com os portugueses.

Glicéria Tupinambá viu um desses mantos ao vivo pela primeira vez há cinco anos, em visita ao Museu do Quai Branly, em Paris, que guarda uma das 11 vestes que estão na Europa. "Não vejo o manto como objeto, mas como agente. Ele não traz só a história de seu deslocamento, mas as vivências ritualísticas junto ao seu povo. São memórias, e não uma coisa estática", ela diz.

Há cerca de dois anos, Rodrigo Azeredo, embaixador brasileiro na Dinamarca, visitou o Nationalmuseet e ficou encantado. Ele visitava a sala dedicada à missão holandesa no Brasil, liderada por Maurício de Nassau, quando se deparou com as penas vermelhas.

O embaixador decidiu então concentrar seus esforços para trazer o manto de volta ao Brasil. Entrou em contato com Alexander Kellner, que enviou uma carta em nome do Museu Nacional à Dinamarca. O cacique Babau, liderança tupinambá, fez o mesmo, e em sua carta havia o pedido para que Glicéria fosse ao Nationalmuseet ver o manto.

"Pela escuta do manto, soube que ele estava esperando um parente de linhagem sanguínea para ser contatado. Houve uma consulta aos encantados e ele disse que havia completado sua missão e que queria voltar", diz. Os tupinambás concordaram que o manto fosse guardado no Museu Nacional.

Apesar do manto tupinambá configurar como uma doação fruto da negociação entre museus, sua história se insere em um contexto de retorno de relíquias históricas aos seus países de origem —esquentando o debate sobre a devolução de peças arqueológicas e de arte retiradas de seu território durante períodos de colonização.

Esqueletos maori foram repatriados à Nova Zelândia em 2016, enquanto um relatório recente elaborado pela historiadora francesa Bénédicte Savoy e o economista senegalês Felwine Sarr mostra que a maior parte do patrimônio africano se encontra na Europa.

No ano passado, a Alemanha devolveu 20 bronzes do Benim à Nigéria, e a Holanda anunciou que devolverá mais de 478 artefatos à Indonésia e Sri Lanka. Em ambos os casos, os itens foram retirados de seus países no período colonial.

No caso do Brasil, o fóssil do dinossauro Ubirajara, encontrado no Ceará, foi repatriado após passar três décadas na Alemanha. Recentemente, uma coleção de 611 peças etnográficas indígenas também foi devolvida pela França ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Outros objetos, como cerâmicas marajoara, produzidas entre os anos 400 e 1.400 no Pará e que hoje estão em instituições dos Estados Unidos e da Europa, não têm data para voltar.

"Na França e na Inglaterra, as coleções são nacionais, portanto não pertencem aos museus, que são gestores. No caso francês, para cada item devolvido é necessária a adoção de uma lei particular", diz Leandro Varison, pesquisador científico do Museu do Quai Branly.

No caso do manto tupinambá, depois da aprovação do Nationalmuseet, a doação precisou ser aprovada pelo Ministério da Cultura da Dinamarca. "Essa questão de repatriação é muito delicada. Decidimos chamar de doação, para não gerar polêmica", diz Azeredo, o embaixador brasileiro.

Segundo ele, a motivação do Nationalmuseet foi em parte ajudar a reconstruir o Museu Nacional, como parte de uma cooperação internacional. Por outro, os dinamarqueses parecem ter compreendido a importância religiosa do manto para o povo tupinambá.

Indígenas tupinambás retratados em gravura feita por Theodor De Bry (1528- 1598)
Indígenas tupinambás retratados em gravura feita pelo holandês Theodor De Bry - Museu Nacional

A vestimenta sagrada foi trazida ao Brasil no ano 2000, para a exposição "Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento", em São Paulo, um ano antes de a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, reconhecer que os tupinambás não estavam extintos.

Na época, Nivalda Amaral de Jesus, que pedia ao governo o reconhecimento de sua comunidade como tupinambá, foi visitar o manto, que ela queria de volta ao Brasil.

João Pacheco, antropólogo e curador do Museu Nacional, diz não querer simplificar a repatriação. "O manto é totalmente singular, até porque o guará está em risco de extinção. A ausência do manto é uma marca importante para o enfraquecimento dos indígenas."

Além da pesquisa arqueológica, a vestimenta é imprescindível para a formação da identidade cultural tupinambá, diz ele. "As políticas da memória no Brasil são historicamente muito frágeis, justamente por ser um país colonial de matriz extrativista", diz Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake e do Centre Pompidou, em Paris, que planeja ainda neste semestre uma exposição sobre a arte brasileira para além da influência europeia.

A Lei do Patrimônio Arqueológico no país é de 1961. Seu atraso impediu a preservação de diversos patrimônios, entre eles os sambaquis, estruturas formadas por ocupações pré-coloniais no litoral brasileiro.

Hoje, o país assina a Convenção de 1970 das Organizações das Nações Unidas (ONU) contra a transferência ilegal de bens culturais, mas que se aplica mais a casos de tráfico e venda ilícita de objetos históricos.

Segundo Miyada, pesquisas de patrimônio cultural no Brasil raramente foram impulsionadas por políticas públicas.

Mário Pedrosa, um dos mais importantes críticos de arte do país e figura central na futura mostra organizada por Miyada, pensou um sistema de museus fortalecido em rede, para que pudessem compensar os pontos frágeis e trabalhar em conjunto. "Isso deveria ser aplicado ao Museu Nacional, para que sua administração não esteja sozinha na solução de desafios materiais e conceituais", diz Miyada.

Na opinião de Glicéria Tupinambá, o retorno do manto tinha de ser agora, no momento de debate político em torno do marco temporal, que pretende definir territórios indígenas apenas de acordo com sua ocupação no momento da Constituição de 1988.

Alexander Kellner, o diretor do Museu Nacional, concorda. "Se estivesse aqui antes, teria sido queimado", diz. O diretor afirma que vem percebendo, no entanto, a boa vontade do novo governo para reconstruir o museu, o que constatou depois de uma visita de Lula e do ministro da Educação, Camilo Santana, somada à promessa de uma nova linha orçamentária destinada à instituição, mantida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Paulo Miyada também vê com bons olhos o interesse do governo e da sociedade em relação não só ao museu, mas também ao manto tupinambá. "A política da memória não diz respeito só ao passado longínquo, mas inclui a construção do presente e a capacidade de projetar o futuro", diz.

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