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Doris Monteiro e Leny Andrade renovaram nossa música moderna

Cantoras estrearam ainda adolescentes e abraçaram novos estilos que se engendravam no Brasil dos anos 1950

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Rodrigo Faour
Rio de Janeiro

Elas começaram muito jovens em programas de calouros, estrearam profissionalmente ainda adolescentes e abraçaram a música moderna que se engendrava no Brasil dos anos 1950. Doris Monteiro, nascida em 1934, e Leny, em 1943, ensinaram que era possível serem mulheres autônomas, nas vidas privada e artística, sem se submeter a homens equivocados, nem gravar o que não queriam –algo que sempre permeou a vida da maioria das nossas intérpretes, principalmente a da geração delas.

As cantoras Doris Monteiro, à esq., e Leny Andrade
As cantoras Doris Monteiro, à esq., e Leny Andrade - Divulgação

Filha adotiva de um casal, cujo homem era um porteiro de prédio em Copacabana, Doris Monteiro já tinha no DNA algo das mulheres modernas do bairro, pois sempre quis ser cantora, decidiu estudar inglês e ia às lojas de disco ouvir Dick Farney e Lucio Alves, seus ídolos de emissão suave.

Tentou a sorte então no Papel Carbono, onde os calouros imitavam algum artista em voga, optando por uma cantora francesa, Luciene Delyle, porque no Brasil não havia outra que cantasse com tão pouca voz. Deu certo. Logo descolou um contrato e estreou aos 17.

O maior crítico da época, Sylvio Tullio Cardoso, desprezou totalmente seu primeiro 78 rpm. Disse que deveria voltar aos estudos e largar a carreira. Mas o disco estourou, com o samba-canção "Se Você se Importasse", de Peterpan.

Anos depois, teve de fazer mea culpa e lhe entregar um troféu como "melhores do ano" de sua coluna em O Globo, época em que foi vedete da revista "Fantasia e fantasias", no Copacabana Palace. Como se não bastasse, estrela da Tupi, foi eleita Rainha do Rádio em 1956.

Doris, então, já uma grande intérprete da ala moderna do samba-canção, teve sucesso com músicas de amor positivas, coisa rara à época, como "Do Re Mi" e "Graças a Deus", ambas de Fernando César, que ela resolveu dar uma chance por insistência de Chacrinha. Motivo: ele tinha uma fábrica de sabonetes, "como poderia ser bom compositor?", pensava, mas a intuição do Velho Guerreiro estava certa.

Em 1957, por insistência de outro compositor moderno, Billy Blanco, gravou "Mocinho Bonito". Descobriu então que tinha uma bossa tremenda para interpretar esse tipo de samba, por isso surfou muito bem pelos vindouros sambalanço, bossa nova e samba rock.

Alguns sucessos depois, como "Palhaçada", "Mudando de Conversa", "É Isso Aí" e "Alô, Fevereiro", Doris gravou quatro álbuns com Miltinho. O título não poderia ser melhor, "Doris, Miltinho e Charme". Charme, realmente, era sua marca registrada, vindo muito de seu lado atriz. Sim, pois em 1953, já atuava no cinema nacional e chegou a ser premiada por seu papel em "Agulha no Palheiro", de Alex Viany.

Em 1976, passou a viver com o pianista jazzístico Ricardo Júnior e a vida inteira passou a ser acompanhada por ele. Antes, teve outros dois maridos, sendo que o primeiro, ainda nos anos 1950, a traiu. Quando ela o flagrou com outra mulher em sua casa, o mandou embora imediatamente depois de menos de um ano de casamento, na época em que separação era tabu. Mas ninguém passava a perna em Doris. Era muito viva e ciumenta.

Doris teve uma carreira regular em disco até 1981, incluindo um álbum com seu ídolo Lucio Alves, após uma excursão a seu lado no Projeto Pixinguinha. Como seus discos eram muito bem cuidados, com o fino da MPB e da bossa, ao ser rejeitada pelas grandes gravadoras, preferia não gravar a ter que se sujeitar a álbuns de baixo orçamento.

Leny Andrade, pioneira do scat singing nacional

No ano que Doris gravava o primeiro disco, 1951, com apenas oito de idade, Leny Andrade já arriscava a sorte cantando música de adulto, "Risque", de Ary Barroso, num concurso que houve no subúrbio de Del Castilho, onde morava. Passou a seguir pelo Programa do Guri, triunfou no César de Alencar, da Rádio Nacional, até que aos 15, estreou profissionalmente como crooner da orquestra de Permínio Gonçalves, uma das muitas bandas de baile dos anos dourados.

Estávamos em 1959, ano que perdíamos Dolores Duran, sua maior referência, mas não sem antes ter gravado um compacto duplo registrando "Fim de Caso", que na segunda parte da melodia improvisava com scats, ao invés de cantar a letra. Foi assim que Leny aprendeu a improvisar e fez disso sua marca. Inicialmente com a voz mais aguda, depois mais grave e quente.

Após gravar discos de 78 rpm independentes que quase ninguém tomou conhecimento, gravou na RCA entre 1961 e 62, com a bossa nova já consagrada, trabalhando com Luiz Eça e músicos que iriam depois compor o Tamba Trio. Depois, passou pela Polydor num álbum ao vivo em estúdio, enquanto, em paralelo, foi "a única crooner da orquestra de Dick Farney", gostava de frisar, e atuava no João Sebastião Bar, templo da bossa paulista, revezando-se com Claudette Soares.

Em 1965, tudo mudou em sua carreira. O álbum "Estamos Aí", na Odeon, estourou, trazendo alguns dos primeiros arranjos de Eumir Deodato, incluindo a faixa-título. E a dupla Miele e Bôscoli produziu no Porão 73 o show "Gemini V", em que cantava uma bossa-jazz explosiva ao lado de Pery Ribeiro e do Bossa Três, que também virou disco.

O sucesso foi tanto que passaram ao Teatro Princesa Isabel e outros locais até serem contratados para atuarem na Cidade do México a partir de 1º de agosto de 1966, no El Señorial, onde passaram a residir. Ali conheceu Sarah Vaughan e muitos outros ícones do jazz mundial.

Em outubro de 1972 voltou ao Brasil. Época de "Gemini V Anos Depois". Vieram alguns projetos experimentais em disco, incluindo um homônimo, só de samba de raiz, na Odeon, época em que cantava também em casas como a Catedral do Samba, em São Paulo, e que casou-se, pela primeira e única vez, com o artista plástico Carmelo Senna, mas somente por cinco anos, porque não suportou ter um marido dependente de drogas.

Foi em 1983 que Leny retomou sua carreira internacional, cantando pela primeira vez no Blue Note, de Nova York, o que lhe abriu progressivamente as portas dos festivais de jazz da Europa, Estados Unidos e Japão, onde cantou por inúmeras vezes, chegando a manter um apartamento na ilha de Manhattan. Tony Bennett toda vez que ia vê-la, fazia uma caricatura sua nos guardanapos dos clubes.

No Brasil, as grandes gravadoras lhe fechavam as portas, pois seu som era eterno e não de modismos. Passou a gravar em todos os selos independentes que se possa imaginar, destacando dois memoráveis álbuns homônimos na Pointer, em 1984 e 85, e três na Eldorado, incluindo o clássico "Luz Neon" (1989), com antológicas versões de "Adeus, América", "Wave", "Batida Diferente" e "Night in Tunisia", além de álbuns em parceria com Gilson Peranzzetta, César Camargo Mariano e Romero Lubambo.

Doris e Leny eram pessoas divertidas e cativantes. Adoravam contar piadas e falar palavrão entre amigos, e curtiam a convivência com os fãs, inclusive os gays que nunca a esqueceram. Exigentes demais, por vezes ranzinzas profissionalmente por quererem sempre o melhor, tiveram carreiras impecáveis que a posteridade terminará de consagrar.

Cantaram e gravaram sem concessões com o melhor e o mais moderno que a nossa música pôde produzir em termos de melodia e harmonia. Admiravam-se mutuamente, disso sou testemunha. Leny a chamava carinhosamente de "Dodó". Foram juntas para o eterno e eternamente sempre se farão presentes onde quer que haja fãs de música, para além do entretenimento.

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