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Artes Cênicas Zé Celso (1937-2023)

Luiz Fernando Ramos: Zé Celso transcendeu e criou o teatro brasileiro

Criador do Oficina resgatou expressões cênicas esquecidas e repudiadas pelo 'teatro de arte' da Europa

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Luiz Fernando Ramos

Professor de história e teoria do teatro na Universidade de São Paulo

A morte de Zé Celso, do Teatro Oficina, eclipsa um sol que brilhou intensa e persistentemente no céu da pátria e da frátria. Em torno dele orbitou um Thyaso, bando de Dionísio que brinca às margens do rio do Bexiga, onde vicejou uma floresta de troncos vigorosos.

Zé Celso partiu como um anarquista coroado em cortejo de fogo. Fez e foi tudo o que era e pôde, nunca traindo suas convicções e sempre avançando mais, em novas superações, como só os grandes artistas alcançam. Zé nunca parou de irromper em novas manhãs. Nunca cansou de ser moderno.

Zé Celso durante encenação de 'Roda Viva', em 2019
Zé Celso durante encenação de 'Roda Viva', em 2019 - Carl de Souza - 6.jul.23/AFP

Morreu, quase consensualmente, o maior artista do teatro brasileiro de todos os tempos, pelo menos nos últimos três séculos. No século 19, João Caetano, como ator e empresário, reinou absoluto. Venceu gloriosamente a disputa com os patrícios portugueses pelos palcos. Na passagem para o século 20, Arthur Azevedo, como autor e encenador, formatou uma teatralidade musical brasileira.

Depois vieram os grandes atores produtores Leopoldo Fróes e Procópio Ferreira, cuja força atrasou em duas décadas a modernização teatral frente a outras artes. Esta chegou oficialmente com os Comediantes e o Teatro Brasileiro de Comédia, que germinaram muitas divas, entre elas a maior, Cacilda Becker, com partida não menos trágica dp que a dele.

Zé Celso era filho direto da atriz e reconheceu-se assim quando escreveu e encenou uma tetralogia sobre ela, que acabou sendo fundadora no ciclo do Oficina mais recente, de 30 anos. O Zé/Treplev de Cacilda/Arkadina, como na "Gaivota" de Tchecov e na primeira "Cacilda!" de Zé Celso.

Ele ocupa, pois, um lugar de honra na história do teatro brasileiro, por muitas razões. Não fosse pela constante criação cênica e embate político cultural, em 65 anos de realizações notáveis, por ter sido aquele que, com "O Rei da Vela", de 1967, completou seu processo de modernização ao resgatar cenicamente as teatralidades populares esquecidas e repudiadas pelo "teatro de arte" —o circo, o teatro de revista, as festas de terreiro e o Carnaval.

O primeiro modernismo teatral dos anos 1940 e 1950 foi capitaneado por encenadores europeus cultos e com valores artísticos sóbrios. Zé Celso transcendeu aquele molde importado e engendrou, na sua poética cênica, uma nova teatralidade, genuinamente brasileira, feito tão significativo no planeta quanto foram a bossa nova e o tropicalismo.

Ele realizou as antevisões que os modernistas de 1920 e 1930 projetaram e tinham ficado encapsuladas. Com o Oficina, chegou o "Teatro da Bagunça" que Alcântara Machado reivindicara 40 anos antes.

Mas Zé Celso não parou por aí. Desbravou em Brecht uma nova perspectiva, menos intelectual e racional, oferecendo "Selva das Cidades", de 1969, talvez a obra maior daquela primeira fase, e "Galileu", de 1970, já a caminho do disruptivo "Gracias Señor", de 1972, e do festivo "Oficina Samba", entre 1973 e 1079, que consolidou o grande vitorioso daquele processo de rupturas, o coro, semente de tudo que aconteceu depois.

Sim, o coro, nascido em "Roda Viva", de 1968, e crescido entre as frestas das rachaduras deixadas pela radicalização dos anos 1960, comeu o Oficina e ocupou a antiga companhia profissional, transformando-a numa comunidade criativa, ampla e irrestrita, ainda em plena forma.

A "Mutação da Apoteose", atualmente em cartaz, uma criação de Camila Mota, a coriféia que se fez Cacilda, é a prova dos nove da felicidade de o Oficina continuar existindo e já não depender do Zé para operar.

Mas ele esteve até aqui à frente, e sua singularíssima obra, tomada mesmo na perspectiva internacional, é única e original. Augusto Boal é o brasileiro que, como autor e pensador de teatro, tornou-se mais conhecido mundialmente.

Zé Celso, no entanto, constituiu um modo de produção cênica genuíno e próprio, em que escrevia e encenava imaginariamente, para então concretizar no espaço do Oficina, a Usyna Uzona, contando com o coro como um dispositivo decisivo. Esse legado não se perde, mas sem ele se modificará.

Antunes Filho foi um antagonista da mesma geração, parelho na consecução, nos anos 1980, do ciclo de modernização e na influência sobre a cena teatral do país que lhe foi contemporânea, em respeitoso diálogo mudo com Zé. Mas esteve sempre com um apoio institucional seguro, enquanto Zé optou pela errância desacomodada e arrombou portas para realizar alguns prodígios.

Entre eles, demolir um teatro recentemente erigido por Flávio Império, depois de um incêndio, e construir um novo, com as linhas finas de Lina Bo Bardi, que se tornou referencial na história mundial do teatro.

Ele também garantiu a territorialidade pública deste novo espaço cênico contra os ataques do gigante Pietro Pietra, do Baú da Felicidade, do grupo Silvio Santos, num embate de 40 anos, até aqui vencido.

Por fim, Zé Celso encenou "Os Sertões", de Euclides da Cunha, em cinco espetáculos integrando 25 horas, montados ao longo de cinco anos. Eles também foram apresentados integralmente e pranteados na Alemanha, além de terem sido transmitidos pela internet desde o sertão baiano.

Zé fez tudo isso —e muito mais que os historiadores vão garimpar—, sempre de forma transparente e corajosa, ousando enfrentar o debate franco e público, sem esconder nada e assumindo completa e irrevogavelmente sua condição de dínamo de todas as transgressões possíveis.

Seu trabalho interrompido com a "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa, é um réquiem que deixa para o planeta. Esta obra em processo, que certamente prosseguirá com as energias do próprio Oficina, realização maior deste demiurgo de corpos e almas, associa sua partida à própria agonia da Terra e dos territórios amazônicos dos povos originários.

Lutar pela Amazônia, para nós brasileiros, implicará doravante lutar também pelas "oficinas de florestas" que Zé Celso plantou no Bexiga, em São Paulo. Ao anarquista coroado, todas as flores e fogos por suas conquistas eternas.

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