Descrição de chapéu Artes Cênicas

Como Lina Bo Bardi, do Masp, criou o Teatro Oficina de Zé Celso em São Paulo

Além da construção no bairro do Bexiga, dramaturgo e arquiteta também colaboraram em montagens de peças e filmes

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Francesco Perrotta-Bosch

Autor de 'Lina: Uma Biografia' e doutorando da FAU-USP e da Universidade IUAV de Veneza

Rio de Janeiro

Zé Celso e Lina Bo Bardi encontraram-se pela primeira vez por acaso, no início de 1962, no Rio de Janeiro. Ele havia ido para Guanabara a fim de encontrar Martim Gonçalves, que detinha os direitos autorais no Brasil da peça "Um Bonde Chamado Desejo", escrita por Tennessee Williams.

A dupla marcou a reunião em um boteco carioca, no qual Gonçalves, ex-diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, tomava um drinque com Bo Bardi, então diretora do Museu de Arte Moderna de Salvador.

Interior do Teatro Oficina, no bairro do Bexiga, em São Paulo, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi
Interior do Teatro Oficina, no bairro do Bexiga, em São Paulo, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi - Gabriela Di Bella/Folhapress

O dramaturgo do Teatro Oficina, ainda tímido naquele início dos anos 1960, não teve coragem de sentar à mesa dos amigos soteropolitanos. De pé, as duas grandes figuras do teatro brasileiro trocaram breves palavras, momento em que Zé Celso sentiu-se observado de cima a baixo por Bo Bardi. Achou a arquiteta tão linda e atraente que se sentiu intimidado. Foi embora do bar e passou seis anos sem vê-la.

Glauber Rocha promoveu o reencontro e a primeira conversa entre os dois. O cineasta baiano tornara-se amigo de Zé Celso e, quando ia a São Paulo no final dos anos 1960, dormia no chão da sala do pequeno apartamento que o diretor teatral dividia com o ator Renato Borghi.

O Oficina iniciava os preparativos para "Na Selva das Cidades", de Bertold Brecht. Rocha havia visto a "arquitetura cênica" de Bo Bardi para a "Ópera dos Três Tostões", também de autoria do dramaturgo alemão.

Ele recomendou veementemente que Zé Celso trabalhasse com a arquiteta em sua nova montagem. Dias depois, Bo Bardi recebeu o cineasta e Zé Celso na Casa de Vidro, onde morava. Tomaram uísque, conversaram e começaram a trabalhar juntos.

O Oficina já tinha como endereço o número 520 da rua Jaceguai, no bairro do Bexiga, mas era uma construção de Joaquim Guedes, que acabou destruída em um incêndio em maio de 1966. Após o desastre, o pintor e arquiteto Flávio Império e o arquiteto Rodrigo Lefèvre conceberam o segundo projeto arquitetônico do Oficina tal como um teatro com palco italiano.

No entanto, em "Na Selva das Cidades", Bo Bardi não seguiu essa configuração. O palco foi substituído por um ringue de boxe e uma arquibancada mambembe foi erguida na parede de fundo da sala de espetáculo, de modo que uma plateia ficasse frente à outra, tendo a arena da encenação ao centro.

"O cenário no ringue representa a metáfora da luta", afirmava Zé Celso. Sua adaptação consistia em um roteiro de sucessivas destruições. Iniciava-se, assim, uma colaboração na qual o projeto cenográfico de Bo Bardi atravessava a montagem dramatúrgica de Zé Celso e vice-versa.

Na abertura, em setembro de 1969, ele declarou à imprensa que a peça era catártica, apocalíptica, catastrófica e caótica. Muitos entrecruzamentos foram estabelecidos entre a narrativa de Brecht e a realidade daqueles meses que se seguiram à decretação do AI-5.

Na época, em frente ao Teatro Oficina, o então prefeito Paulo Maluf construía o viaduto Jaceguai como uma parcela de um sistema de autopistas, do qual também fazia parte o Minhocão, do outro lado da praça Roosevelt.

A faraônica obra destruiu dezenas de quarteirões do Bexiga. Entulho, escombros e destroços das demolições de centenas de sobrados foram a matéria-prima de Bo Bardi para confeccionar o ringue de "Na Selva das Cidades".

Diariamente, a arquiteta saía pelo canteiro de obras pegando tábuas de madeira da vizinhança que não mais existia. Também coletava utensílios de cozinha, cortinas, toalhas, porta-retratos e objetos pessoais que antigos moradores tiveram de deixar para trás. Ela trazia para dentro do Oficina o que se pressupunha como lixo, mas eram resquícios de uma comunidade que brutalmente deixava de existir.

Zé Celso sintetizava o sentimento do bairro com uma fala proferida na peça. "Destas cidades só vai restar o vento que passa por elas."

Todas as cenas terminavam em conflito. Em cada ato, o ringue era paulatinamente destruído até os atores terminarem cavando o próprio solo sob o Teatro Oficina. Acompanhando o espírito das manifestações de 1968, a arquiteta proclamava que, "se tirar o cimento, vira sertão". Terminada cada apresentação da temporada de seis semanas, reconstruía-se o ringue com mais escombros do Bexiga.

A parceria de Bo Bardi com Zé Celso prosseguiu no filme "Prata Palomares", de 1970, e na peça "Gracias Señor", montada em 1972. Em um ano que a repressão da ditadura se aproximava de muitos membros do Oficina, a montagem mesclava ficção e realidade, misturava atores e público. Cenograficamente, suprimia a divisão entre palco e plateia em um ambiente que remetia a um campo de concentração.

Foi em dezembro de 1980 que Bo Bardi começou a se debruçar no projeto de transformação do edifício do Oficina. Um mês antes, quando Zé Celso concedia uma entrevista a Otavio Frias Filho, então repórter da Folha, um oficial de justiça apareceu no teatro com a minuta de compra da edificação por Silvio Santos e a carta de aceite dos proprietários do imóvel, que era alugado. Começavam assim as quatro décadas e meia de disputa pelo terreno.

De imediato, houve uma comoção no meio cultural para arrecadação do valor para a compra do imóvel pela companhia teatral, que, por lei, tinha a preferência pois era a locatária há vinte anos. A maneira de contribuir de Bo Bardi foi conceber um estudo preliminar para reforma do teatro com croquis feitos de caneta bic e canetinhas coloridas.

O parceiro de Bo Bardi no começo do projeto era o arquiteto Marcelo Suzuki, que fez uma maquete, na qual o Oficina incorporaria tanto o sobrado vizinho, onde ficariam os camarins e a produção, quanto os terrenos pertencentes a Silvio Santos, onde ela imaginou um anfiteatro ao ar livre.

Sem conseguir captar toda a verba necessária, a companhia mudou de estratégia e entrou com um processo de tombamento no Condephaat, o órgão estadual de preservação do patrimônio. O parecer foi elaborado por Flávio Império, que defendeu a edificação como registro das relações comunitárias e culturais estabelecidas no Bexiga.

O presidente do órgão público era o geógrafo Aziz Ab’Saber e, no dia 16 de novembro de 1982, ele afirmou perante o conselho da instituição que estava tombando o Oficina para ele continuar a ser teatro.

Na resolução, lê-se que o Oficina é "um elemento de suma importância para documentação do surto de pesquisas de linguagem teatral que influencia até hoje o teatro moderno no Brasil". A edificação foi desapropriada em agosto de 1984 e cedida pelo poder público à companhia teatral em um contrato de comodato de cem anos.

Em seguida, os atores da companhia iniciaram as obras com as próprias mãos. Pegaram marretas para demolir as paredes e remover o chão de concreto do Oficina. Bo Bardi ficou preocupada quando viu a indomável trupe de Zé Celso destruindo tudo e foi até o teatro.

A arquiteta chamou o engenheiro Roberto Rochlitz, que, quando viu a situação, pediu que ela parasse imediatamente a obra antes que o edifício inteiro viesse a ruir. Bo Bardi conversou com Zé Celso e ele aquiesceu.

Da companhia teatral veio o parceiro final do projeto, Edson Elito, arquiteto que, à época, colaborava com o Oficina fazendo filmagens. Bo Bardi e Elito não se conheciam pessoalmente. Coube a Zé Celso apresentá-los num sábado na Casa de Vidro.

Com trinta e poucos anos, Elito estava tão tenso com o encontro que travou a coluna na véspera. A arquiteta simpatizou com o jovem e a parceria teve início. Os desenhos dos estudos anteriores não foram consultados. No papel, era como se recomeçasse do zero.

A dinâmica de trabalho entre Bo Bardi e Elito era composta por conversas acompanhadas por desenhos feitos após o almoço na mesa circular de tampo de mármore da sala da Casa de Vidro. A experiente arquiteta permanecia com os croquis para aquarelá-los até a reunião seguinte. O jovem arquiteto elaborava os desenhos técnicos, levando-os até a residência dos Bardi para que ela conferisse.

Naquele momento, a referência principal de Bo Bardi para o Oficina era o "nô", um tipo de teatro japonês cujas origens remontam há mais de cinco séculos e as demoradas apresentações, às vezes de um dia inteiro, combinam poesia, dança, canto e música instrumental.

Num domingo, Elito, Zé Celso e a diretora teatral Catherine Hirsch almoçaram um carneiro assado e tomaram vinho no meio do canteiro de obras do teatro. O antigo piso tinha sido removido quase por completo.

Pisando no chão de terra, eles constataram a existência de uma declividade natural no interior do longilíneo lote. Foi nessa tarde que Zé Celso vislumbrou um palco em rampa —em outros termos, uma pista seguindo a topografia do terreno, na qual os artistas atuariam.

Elito levou a ideia para Bo Bardi. Dias depois, a arquiteta retornou com um desenho intitulado "Oficina Teatro-Estrada". Nele, o palco aparece como uma rua inclinada entre duas galerias laterais compostas por tubos metálicos finos, pintados de azul, onde os espectadores se acomodariam.

Não era um croqui rápido à mão livre, mas uma imagem traçada por ela com rigor geométrico em caneta de tinta preta e canetinhas azul, vermelho e verde, além de várias anotações periféricas em lapiseira. Esse desenho, de 24 de outubro de 1985, foi o último que Bo Bardi fez para o Teatro Oficina. Foi também a gênese da versão construída do projeto.

Somente em 1989 Elito pôde começar o projeto executivo para guiar a obra. Voltou a encontrar periodicamente a arquiteta na Casa de Vidro. Conversavam muito pelo telefone. Quando chegou o momento de aprovação do projeto na prefeitura, Bo Bardi se recusou a assinar os desenhos.

Foi preciso reunir uma pequena comissão com seus colaboradores mais próximos, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki, acompanhados do ator Marcelo Drummond, que veio a se tornar marido de Zé Celso e, na ocasião, carregava o pacote de documentos a serem apresentadas aos órgãos do município.

A arquiteta precisou ser convencida pelo trio de Marcelos. "Este não é mais meu projeto. É muito bonito, mas não é mais meu. É do Edson. Assino porque o Zé me pediu e o Edson tem muito talento", disse ela.

Dois homens de roupas brancas, sentados num banco de madeora, seguram alianças
Zé Celso Martinez Correa e Marcelo Drummond, que estavam juntos desde 1986 - Reprodução

Com a saúde debilitada, a arquiteta viu a obra somente uma vez e reclamou da estrutura metálica que estava sendo montada. Não deu tempo de ela ver o Oficina pronto. Bo Bardi morreu um ano e meio antes da inauguração, em 1º de outubro de 1993, quando se encenou "Hamlet", de William Shakespeare.

Mesmo sem presença de Bo Bardi, lá estava seu "teatro-estrada", a plateia de andaimes cor azul e, por trás da árvore, o janelão que ela nunca concebeu. Lina também aconselhou a Zé Celso que, para "segurar" o Oficina, era preciso colocar um elemento de ferro na entrada como nos terreiros da Bahia. Por isso, em cima da porta de entrada, está suspensa uma bigorna.

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