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Sinéad O’Connor fez da música um lugar para refletir sobre a alma

Voz de ‘Nothing Compares 2 U’ lidou com bipolaridade e chocou o mundo ao rasgar foto do papa ao vivo na televisão

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São Paulo

"Eu estou esparramada no seu túmulo e vou ficar ali para sempre." Estranhamente, ao saber da morte de Sinéad O’Connor, foram esses versos, e não os de "Nothing Compares 2 U", que passaram a rodar em loop na memória.

Ambas essas canções são do inacreditável álbum "I Do Not Want What I Haven’t Got", um trabalho daqueles que aparecem uma, talvez duas vezes a cada geração. E a versão da música até então inédita na voz de seu autor, Prince, acabou puxando toda a carreira de O’Connor, repassada agora em incontáveis obituários.

A cantora Sinéad O'Connor durante show em Nova York, em 2012 - Jason Kempin/Getty Images/AFP

Mas é o poema irlandês do século 17, batizado no original de "Táim Sínte Ar Do Thuama", que ecoa nesse luto. Reinventado por O’Connor com batida seca e violino irlandês inconfundível, ele se transformou num réquiem universal.

A imagem de um homem que perdeu a mulher que amava desde que a conheceu ainda criança, chorando sobre seu cadáver e eternamente a resguardando na sua cova não poderia ser uma tradução melhor do amor atormentado que a própria artista inspirou. Ou quase sempre.

Raras estrelas do pop tiveram reviravoltas tão drásticas na carreira quanto Sinéad O’Connor no início dos anos 1990. Com o sucesso estratosférico da versão de Prince, a cantora tinha literalmente o mundo a seus pés. Com um vídeo revolucionário, que evoca os tempos áureos da estreia da MTV no Brasil, ela tinha não só sua voz reconhecida no mundo todo, mas também o seu rosto. E que rosto.

No clipe, que hoje pareceria banal de tanto que foi copiado, O’Connor simplesmente olha para a câmera, canta e chora. Nada mais simples e poderoso do que isso, especialmente numa época onde tudo era editado como se fosse uma festa na Barbielândia.

Imagens da cantora andando por um pátio invernal, num look que anos depois seria identificado como "potteriano", preenchem os trechos em que sua voz cede lugar aos violinos. De resto, só aquele rosto olhando para você e seduzindo com a mais pura emoção.

A história dessa música, como ela disse algumas vezes em entrevistas, não passou pelas mãos do seu autor. Ela apareceu primeiro em 1985 no álbum de uma banda quase insignificante chamada The Family, produzida por Prince. Ele mesmo tinha gravado "Nothing Compares 2 U" um ano antes, mas a versão só saiu postumamente, em 2018.

Sexta faixa de "I Do Not Want What I Haven’t Got", "Nothing" talvez nem fosse a aposta certa —o primeiro single foi "Feel So Different". Mas os caminhos imprevisíveis do pop resgataram essa preciosidade ao cânone da música. Foi com ela que Sinéad O’Connor se tornou a estrela que podia tudo.

Menos rasgar uma foto do papa, claro. Convidada para ser a atração musical do famoso humorístico americano "Saturday Night Live", em 1992, ela fez uma pequena surpresa para o público do programa —e para toda a equipe.

Depois de cantar uma versão à capela de "War", clássico de Bob Marley, ela mostra para a câmera uma imagem de João Paulo 2°, o pontífice de então, e o reduz a pedacinhos. Foi como se toda a fama que ela tivesse conquistado até ali virasse vento.

Políticos oportunistas, líderes religiosos e até Madonna desaprovaram o vandalismo espiritual de Sinéad O’Connor que, para registro, nunca se arrependeu do seu ato. Jamais se desculpou e, na excelente autobiografia "Rememberings", de 2021, o incidente foi lembrado até com orgulho.

Ultraje ou não, o protesto contra o abuso de crianças por padres, sua justificativa para o ato, ofuscou a sua carreira.

Atormentada por pensamentos que muito tempo depois se cristalizariam num diagnóstico de bipolaridade, ela se arrastou por décadas entoando um repertório que variava entre a espiritualidade e um certo tom confessional.

Além dos três primeiros trabalhos, Sinéad O’Connor nunca mais se conectou com os seus fãs. Seguiu fazendo músicas interessantes, mas, depois da sua ousadia em provocar a ira católica, nada que fizesse viria desacompanhada da lembrança daquele desacerto.

Uma injustiça com uma artista de voz única, de repertório idiossincrático e capaz de fazer os fãs pararem para ouvir não só o que cantava, mas os caminhos do pensamento.

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