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Artes Cênicas Zé Celso (1937-2023)

Gerald Thomas: Zé Celso sofreu com assassinato do irmão

Diretor que revolucionou o teatro ligou aos berros quando soube da morte de Luiz Antônio Martinez Corrêa

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Gerald Thomas

Diretor de teatro

Zé Celso, que morreu nesta quinta-feira (6), me puxou da arquibancada, me abraçou com força e desfilou comigo pela lindíssima passarela do Teatro Oficina. Foi com "Ham-Let", na década de 1990. Afastou-se meio metro, apontou o dedo na minha cara, tomou fôlego e disse: "Eu sou o fantasma do teu pai." O público urrou. Por dentro, urrei também.

Ninguém havia notado o erro, mas o que importa? Aliás, é justamente esta a questão. No teatro total, não existem erros. Ele quis dizer que ele era o meu pai, o Fantasma.

Os diretores de teatro Zé Celso, à esq., e Gerald Thomas, à dir. - Reprodução

Era ele o pai assassinado de Hamlet. E eu? Eu era príncipe Hamlet, e deveria vingar sua morte. Esta não tinha sido a primeira nem a segunda vez que Zé tinha me arrancado de uma plateia ou de algum lugar.

A primeira foi quando eu tinha uns 16 ou 17 anos e estava de passagem no Brasil. A peça era "Gracias Señor" e eu não me senti intimidado com um repolho vindo em minha direção. Não acreditei na cena. Achei fraca e pretensiosa essa metáfora —e, cá entre nós, o Living Theater tinha feito isso justamente.

Deixei uma carta para Zé na porta do Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro. Olha só! Estamos em 1987 e eu já com "Quatro Vezes Beckett" e "EletraComCreta" em cartaz, depois de uma rápida e ascendente carreira no Brasil.

O telefone toca na casa da minha mãe. É meio da madrugada e ouço uma voz aos berros. Quero desligar, mas não consigo. Reconheço esta voz. Sim, é o Zé Celso. "É meu irmão, Gerald! É meu irmão! Corra até a casa dele, cara. Corre, vai. Por favor. Tá horrível."

Reconheci o pânico em sua voz. Me vesti e corri. Meus joelhos tremiam. Luiz Antônio morava a um quarteirão de distância da minha mãe. Quando cheguei ao prédio, na rua Maria Quitéria, a polícia já estava lá, e eu senti o cheiro do terror e do horror que pairava no ar.

O que aconteceu? Luiz Antônio Martinez Corrêa, de 37 anos, havia sido assassinado. Uma semana antes, Zé também tinha me ligado por causa de Luiz Antônio. "Ele foi preso por um baseado. Ajuda ele lá no Ponto Zero", referindo-se a uma delegacia no centro do Rio.

Zé já sabia da minha militância na Anistia Internacional em Londres. Mas eu iria de qualquer jeito. E fui. Consegui que o delegado o soltasse. Naquela mesma noite, eu estava entregando o Prêmio Mambembe a Luiz. Nos demos um beijo no palco, rimos, nos abraçamos e depois choramos. Deus do céu.

"Eu sou o fantasma do teu pai."

Recebi Zé e Marcelo Drummond em Nova York em 2009. "Vou dirigir 'Esperando Godot'. Tô com medo. Vou passar aí. Vem fazer a luz para mim" e tantas outras coisas mais foi o que Zé me disse.

O pretexto era o lançamento dos DVDs de "As Bacantes". Aluguei um loft na rua 14 e provoquei um encontro com a Judith Malina, esposa do Julian Beck. Zé não pareceu ter gostado muito da ideia.

Mas era um debate depois da projeção do vídeo e, afinal, o dono do espaço era, ele mesmo, um ex-integrante da troupe da Judith. Foi um clima. Mas foram também muitos gritos, sussurros e confissões, além de uma aproximação inacreditável.

Se a impressão que se tem de pessoas de teatro é que falam de teatro, estão erradas. Falam de tudo. Este "tudo" é teatro, claro. Mas este "tudo" inclui o teatro que o público não vê e aquilo que a gente escolhe esconder.

Na vinda do aeroporto, ao avistar os enormes arranha-céus que apontam no horizonte de Manhattan, para quem vem de Queens, Zé exclamou: "Parece Teresina!" Marcelo riu, e eu tentei rir. Perguntei se ele queria voltar, mas Marcelo respondeu que ele gostava de Teresina. "Entendeu Godot agora, Zé?" Os três caímos na gargalhada.

Estávamos no meio do túnel. Estávamos no fundo do poço e não sabíamos, mas ríamos. Estávamos no Midtown Tunnel

Zé é o maior do mundo. Não só do Brasil, mas do mundo. Não importa a peça. Não importa nada disso. Importa a ideia e importa o espetáculo que foi sua vida. E sua vida foi vivida com base no Deus do teatro. Sim, Dionísio e o ritual que isso tudo significa.

Da esq. para a dir., os diretores de teatro Cacá Rosset, Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa - Fábio M. Salles/Folhapress

Zé é, em parte, este Dionísio. Vejam como ele se transformava. Efêmero e concreto, etéreo, o extasiante "Eleutério", aquele zoneador duplamente nascido e aquele que baixa assim como quem voa. Quem está ao lado recebia as incríveis vibrações, as ondas, um entendimento de toda a cultura —do pé ao topo da cabeça.

Este foi o teatro do Zé Celso. E este, sim, foi o fantasma do meu pai. Digo isso com muito orgulho, pois ele me considera parte dessa chuva de poetas pensadores. Que chova, então, sobre a nossa poesia.

Ela será chovida porque Zé Celso tem leituras que ninguém nunca teve e jamais terá. Zé Celso foi o maior espetáculo da terra. Foi isso quando estava somente sentado e abria os braços, feitos de magnésio. Seu corpo é manganês. Tenho quase certeza de que Zé anteviu a tragédia. Toda ela.

Mas principalmente a tragédia do tempo, a tragédia do fogo —este fogo que tanto o encanta e em torno do qual conduziu tantos rituais. E agora? Agora Hefesto ficou bravo com alguma coisa. Mas certamente ele anteviu a tragédia do assassinato do irmão, o tempo e a coordenação de tudo.

Somos de teatro e do teatro. Temos sentimentos e estamos conscientes dos sentimentos que nutrem por nós. É essa troca que nos alimenta. Não é um amor tão profundo como se imagina.

Mas, calma, também não é frio. É um amor que espia de fora. Descrito assim parece morno, não? Mas não é. É somente um pouco distante, como Brecht. Um pouco calculado. Sem este cálculo, não se chegaria ao teatro. É isso que Zé Celso anteviu ainda nos anos 1960.

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