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Como países se preparam para receber a sua arte roubada levada à Europa

Indonésia, Nepal, Congo e Camarões estão em negociação com autoridades do hemisfério norte para reaver artefatos históricos

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Catherine Hickley
The New York Times

Até agora, a discussão sobre a devolução de objetos de patrimônio histórico de países do hemisfério sul adquiridos de maneira indevida tem se concentrado principalmente nas medidas tomadas por museus e governos ocidentais.

Sylvie Njobati, ativista pelo patrimônio histórico de Camarões, observa a escultura conhecida como "Ngonnso", em exibição em Berlim
Sylvie Njobati, ativista pelo patrimônio histórico de Camarões, observa a escultura conhecida como "Ngonnso", em exibição em Berlim - Marc Sebastien Eils/The New York Times

Mas, longe dos holofotes, em países como Camarões e Indonésia, profissionais do patrimônio histórico, funcionários do governo e ativistas estão preparando o terreno para recuperar tesouros há muito perdidos, um processo que a maioria deles antecipa que levará décadas.

Identificar os objetos e garantir sua recuperação é apenas uma parte da tarefa. Os desafios incluem estabelecer quem será o proprietário e quem cuidará dos artefatos, melhorar a infraestrutura dos museus, envolver as comunidades e despertar o interesse do público.

"Temos uma missão enorme", diz Placide Mumbembele Sanger, professor da Universidade de Kinshasa que está assessorando o governo do Congo. "Isso não é algo que possamos concluir em cinco anos", acrescenta. "Será um processo longo."

O gatilho para o movimento global de restituição do patrimônio saqueado foi uma promessa de restituir permanentemente o patrimônio africano detido por museus franceses, feita em 2017 pelo presidente Emmanuel Macron, da França, em um discurso em Burkina Faso.

Desde então, Alemanha, Holanda, França e Bélgica estabeleceram diretrizes nacionais para processar reivindicações e devolver artefatos. Um marco nesse processo ocorreu no ano passado, quando a Alemanha transferiu 1.100 bronzes do Benim para a Nigéria.

Houve alguns contratempos. Um presidente nigeriano em fim de mandato decidiu entregar os artefatos devolvidos a um descendente direto do governante do qual eles foram roubados, e isso gerou confusão.

Alguns curadores alemães expressaram preocupação com a possibilidade de os objetos não serem exibidos ou bem cuidados, mas o governo alemão argumentou que a devolução dos bronzes era incondicional e que não cabia à Alemanha ditar o que a Nigéria deve fazer com seu patrimônio recuperado.

Essa posição é compartilhada por profissionais do patrimônio histórico em Camarões, Congo, Indonésia e Nepal, que disseram estar observando atentamente os acontecimentos na Nigéria. As questões relacionadas à devolução de objetos históricos às comunidades de origem também os preocupam.

No Nepal, estátuas que representam deuses estão voltando para os locais de culto de onde foram roubadas; na Indonésia, o governo está conversando com curadores de museus regionais a fim de tornar os museus mais acessíveis, para que objetos ritualísticos possam ser usados em cerimônias religiosas.

Os profissionais do patrimônio no hemisfério sul também enfatizam a necessidade de cooperação na pesquisa do contexto histórico das perdas e das histórias por trás de cada objeto.

Veja abaixo uma análise mais detalhada dos desdobramentos em quatro países.

Indonésia

O espetacular diamante de Lombok, incrustado em um hexágono intrincado de flores e folhas de ouro, é um dos cerca de 500 tesouros culturais indonésios adquiridos indevidamente durante o domínio colonial holandês que voltarão para casa no mês que vem.

As restituições, anunciadas em 6 de julho pelo governo holandês, provavelmente serão as primeiras de muitas. Dezenas de milhares de objetos indonésios permanecem em museus na Europa, principalmente nos Países Baixos.

Os preparativos da Indonésia para receber seu patrimônio foram desenvolvidos em conjunto com as estruturas que os Países Baixos criaram. Em fevereiro de 2021, o ministro da Cultura da Indonésia estabeleceu uma equipe de restituição como contrapartida ao painel do governo holandês, liderado por um ex-embaixador do país.

No ano passado, o governo indonésio enviou uma solicitação formal à Holanda quanto à devolução de oito grupos de objetos —a restituição de julho incluiu quatro deles. O painel holandês ainda não divulgou sua decisão sobre os quatro grupos restantes.

Hilmar Farid, diretor-geral do Ministério da Educação e da Cultura da Indonésia, disse que o painel holandês quer que seu governo faça reivindicações por grupos específicos de objetos detidos em museus holandeses. "O problema é que não sabemos realmente o que existe", afirma. "O próximo passo é que os holandeses abram o acesso dos pesquisadores indonésios às coleções de seus museus."

Como os objetos saíram da Indonésia há mais de um século, as narrativas locais ligadas a eles foram, em muitos casos, perdidas, diz Farid. Cada um dos anéis do tesouro de Lombok que foi devolvido, por exemplo, "tem sua própria história", afirma. "A velocidade e o volume das restituições não são a prioridade, a prioridade é a produção de conhecimento. Vamos nos concentrar em itens que contam histórias."

O Estado indonésio será o proprietário de todo o patrimônio restituído e o Museu Nacional de Jacarta será seu guardião. Mas Farid também está começando a envolver as comunidades indonésias locais e recentemente conversou com a equipe de um museu na ilha de Lombok sobre como os objetos de relevância local podem ser exibidos lá, no futuro.

Muitos dos itens devolvidos têm significado ritualístico. As travessas do tesouro de Lombok eram tradicionalmente usadas para oferendas em cerimônias religiosas, por exemplo.

"Os museus precisarão ser mais abertos e acessíveis a práticas diferentes", diz Farid. "Precisaremos de uma abordagem mais participativa para permitir que as pessoas que não são frequentadores tradicionais de museus interajam com os objetos e suas histórias".

Congo

Quando Jean-Michel Sama Lukonde, primeiro-ministro do Congo, recebeu de sua contraparte na Bélgica, no ano passado, um inventário de 84 mil objetos do patrimônio histórico e espécimes naturais congoleses, foi o início simbólico do que Lukonde descreveu como uma "reapropriação de nossa memória nacional".

Depois disso, o governo congolês promulgou um decreto para criar um sistema com o objetivo de lidar com o patrimônio cultural restituído por museus na Europa e convidou especialistas em história da arte, direito, filosofia e relações exteriores para o assessorar.

Até 1960, a Bélgica controlava um vasto território na África central –com uma área cerca de 80 vezes maior que o país europeu– incluindo o que hoje é o Congo. Exploradores, soldados, representantes do governo, comerciantes e missionários belgas levavam para casa itens que haviam roubado, comprado ou adquirido de outras maneiras.

No ano passado, o parlamento da Bélgica aprovou uma lei que abre caminho para a restituição de bens culturais a Congo, Ruanda e Burundi. Também foi criada uma comissão para trabalhar com sua contraparte congolesa.

A lei tem escopo abrangente. Qualquer objeto adquirido durante o domínio colonial é elegível para restituição e não é necessário que tenha sido saqueado.

Camarões

No ano passado, Sylvie Njobati, uma ativista do patrimônio histórico em Camarões, uma nação da África ocidental, obteve uma grande vitória em sua campanha para trazer para casa objetos saqueados pela Alemanha.

Por meio de uma conta no Twitter chamada BringBackNgonnso, Njobati fez lobby junto a museus alemães e uniu forças nas mídias sociais com outras organizações que pedem a restituição de objetos saqueados na era colonial.

Uma figura de madeira decorada com conchas de búzios chamada "Ngonnso" está em exibição no Fórum Humboldt, em Berlim. Para o povo nso de Camarões, do qual Njobati é parte, "Ngonnso" é muito mais do que um artefato perdido —a figura esculpida é a personificação da mãe de sua comunidade, e sua perda, há mais de um século, é sentida profundamente até hoje.

A Fundação Prussiana de Patrimônio Cultural, organização que supervisiona os principais museus de Berlim, concordou em junho do ano passado em devolver "Ngonnso". Para facilitar as devoluções, o governo de Camarões criou uma comissão de restituição, de acordo com Maryse Nsangou Njikam, consultora cultural da embaixada do país na Alemanha. Seus membros planejam visitar a Alemanha ainda neste ano para discutir como proceder, diz Njobati.

Outros detentores alemães de artefatos camaroneses estão gradualmente seguindo o exemplo de Berlim. A Universidade de Mainz, por exemplo, ofereceu em julho a devolução de um bracelete de contas e uma pequena bolsa contendo itens pessoais, trazidos por um oficial militar alemão depois que ele invadiu o reino de Nso em 1902.

Mas ainda há cerca de 40 mil objetos camaroneses em museus alemães, mais do que nas coleções estatais da capital de Camarões, Yaoundé, de acordo com um relatório produzido por acadêmicos camaroneses e alemães.

Os artefatos detidos na Alemanha incluem tecidos, instrumentos musicais, máscaras rituais, manuscritos, armas e ferramentas, muitos dos quais foram saqueados em ataques violentos. O relatório lista pelo menos 180 "expedições punitivas" envolvendo saques e destruição, durante os mais de 30 anos de domínio colonial alemão.

"Temos um imenso potencial para recuperar nosso patrimônio e nossa dignidade", afirma Njobati. E, embora ela tenha uma conexão especial com "Ngonnso", isso na verdade seria só "o ponto de partida", disse. Não há inventário do patrimônio camaronês em todo o mundo, diz Njobati, mas ela acrescenta que viu artefatos na França e que acredita que também existam objetos em Portugal.

Nepal

A situação do Nepal é diferente da dos três países mencionados acima. Seu patrimônio não foi saqueado em um contexto colonial. Depois que uma revolução em 1951 derrubou a dinastia totalitária Rana, que havia governado o país por mais de um século, o Nepal abriu suas fronteiras para o mundo.

Acadêmicos e turistas ocidentais compraram estátuas e esculturas saqueadas pelos habitantes locais, geralmente de templos no vale de Katmandu, e depois levaram os objetos comprados para fora do país. O tráfico atingiu o auge nas décadas de 1970 e 1980.

Muitos dos objetos saqueados se tornaram parte de coleções de museus ocidentais por meio de legados e doações. "Somos um país pobre, e as pessoas viram como era lucrativo vender seus deuses", disse Alisha Sijapati, diretora de campanha do Nepal pela recuperação de seu patrimônio histórico.

"Katmandu foi tratada como um parque de diversões exótico. As comunidades perderam algo", ela disse. "Nós dependemos dessas estátuas, elas têm superpoderes que nos ajudam em nossas vidas".

A campanha oficial pela recuperação do patrimônio do Nepal, organizada por ativistas, foi criada em 2021 e já garantiu a devolução de mais de 25 estátuas religiosas roubadas, de acordo com Sijapati. Entre elas está uma escultura de mil anos que retrata duas divindades hindus e estava no Museu de Arte de Dallas. Os pesquisadores da campanha localizaram muitas outras peças e estão trabalhando para sua devolução, disse Sijapati.

O grupo rastreia em todo o mundo as estátuas saqueadas e usa a mídia social para obter dicas, circular fotos de esculturas e entalhes desaparecidos e divulgar suas campanhas. Transmite suas descobertas ao Departamento de Arqueologia do Nepal, que, por sua vez, trabalha com o Ministério das Relações Exteriores para encaminhar reivindicações a museus ou instituições.

Sijapati disse que a campanha oficial do Nepal ajuda a agilizar esse processo. "Tentamos fazer a lição de casa muito bem para que o trabalho deles seja mais fácil."

Tradução Paulo Migliacci

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