Descrição de chapéu
Livros

Mia Couto lança livro que simboliza impasse típico da literatura do século 21

'As Pequenas Doenças da Eternidade' mostra que sujeitos excluídos e problemas reais ainda são interrogação para autores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luciene Azevedo

Professora de teoria literária da Universidade Federal da Bahia

As Pequenas Doenças da Eternidade

  • Preço R$ 64,90 (176 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Mia Couto
  • Editora Companhia das Letras

Mia Couto tem uma obra extensa e multifacetada. Já publicou poesia, contos e romances. É premiadíssimo e traduzido para muitas línguas. E gosta de afirmar que encontra em Jorge Amado e Guimarães Rosa referências para sua escrita. Seu mais recente livro, "As Pequenas Doenças da Eternidade", é uma reunião de contos já publicados em Portugal, revisados agora para o leitor brasileiro.

mia couto de perfil
O escritor moçambicano Mia Couto, fotografado em Paris - AFP

O universo de temas e personagens é amplo. Há velhos vivendo sozinhos —"Pássaros Cegos"—, mulheres violentadas que resistem, refugiados.

Muitas narrativas —"Gentil Ladrão", "O Caçador de Elefantes Invisíveis"— lembram o contexto sombrio da pandemia. Outras misturam um conjunto de temas que desafia qualquer cenário de ficção distópica. Uma guerra brutal entre milicianos, islâmicos e polícia; especulação e exploração de riquezas naturais; desrespeito às comunidades ancestrais.

É clara a disposição de Couto de dramatizar os problemas sociais de seu país —e de tantos outros que sofrem a chaga viva do passado colonial— e de captar e reconfigurar uma percepção política de sua realidade por meio das histórias.

Nesse sentido, o conto "A Imortal Quarentena" pode funcionar como uma espécie de metonímia que servirá como uma chave de leitura, mas também como um problema: o hibridismo entre literatura e política.

O personagem principal é um escritor "sem vontade de ser pessoa". "Eis o que lhe resta: ser um escritor solitário no meio de uma pandemia." O narrador onisciente assume uma postura corrosiva e é bastante crítico com os clichês do comportamento de seu personagem. Bernardo é inábil para as tarefas práticas, não sabe diferenciar um desumidificador de um aspirador de pó e precisa requisitar a empregada com urgência porque está tendo uma "disrupção".

Quando Esperança chega, o escritor tem uma epifania. Admoestado pelo irmão que o acusa de pecar por falta de imaginação ("não se encontra uma única história em toda a sua obra"), o escritor passa a observar a rotina dos afazeres domésticos de sua empregada, a entroniza como sua musa inspiradora e "sente que começou a escrever uma narrativa com alma, com gente, com história".

A história pode funcionar como um modo de ler o livro porque se vê aí um impasse experimentado não apenas por Couto, mas por muitos autores contemporâneos, que demonstram uma clara rejeição pela literatura alienada, encerrada no exercício da forma. No entanto, a maneira de lidar com a incorporação de sujeitos excluídos e de problemas "reais" é, ainda, uma interrogação, sempre em busca de respostas.

Realço esse impasse motivada pela própria reflexão de Couto que, recentemente, foi recebido por uma multidão na Festa Literária do Pelourinho, a Flipelô.

Durante sua participação, o escritor afirmou que "a realidade não deve ser esquecida", mas também defende que "a literatura deve afirmar sua própria soberania". Como conjugar esses dois axiomas?

A saída que leio nas narrativas reunidas em "As Pequenas Doenças da Eternidade" é o flerte com a fábula. É como se Couto se abrisse às histórias da realidade, às notícias que lê nos jornais de seu país (os conflitos armados em Cabo Delgado, a nordeste de Moçambique, os megaprojetos de exploração de gás natural por países europeus) e ao mesmo tempo preservasse um espaço que afronta, mas não se dobra à realidade.

Assim, o engajamento e a fábula são compartilhados. Mia Couto não quer fazer literatura meramente engajada, mas tampouco quer "apenas o refúgio dentro do papel" e cultiva a observação de vidas miúdas como gesto político.

Essa mescla entre a fabulação ("cada cabelo era um fio tricotando as nuvens. Júlio pendurava no céu os cabelos da mãe") e o brutalismo ("para trás ficaram meus pais, que foram mortos pelos terroristas. Cortaram-lhes a cabeça, os braços e as pernas") nem sempre é tranquila, e às vezes desanda. "Arrancamos pedaços do mundo e nesse vazio escuro vamos deixando de nos ver uns aos outros."

Mas o livro vale a leitura, pois a aposta nesta ambivalência é a sua resposta a um impasse vivido pela arte hoje.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.