Peça 'Autorretrato' tem robô sexual e guia espectador por casarão tombado em SP

Edifício de arquitetura centenária Central 1926 é transformado em cabaré futurista para receber trama sobre o mito de Narciso

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São Paulo

Um chão espelhado representa o lago onde Narciso, debruçado sobre a superfície, mira seu reflexo, atônito. É um rapaz de cachos louros e roupas brilhantes, que parece ter acabado de sair de um cabaré. "Amo o que vejo, mas o que amo e vejo não acho", suplica, sem desviar de seu próprio olhar.

peça 'Autorretrato', de Felipe Hirsch
peça 'Autorretrato', de Felipe Hirsch - Divulgação

Em frente à performance, um ator seminu está dentro da parede e pode ser observado através de uma vitrine, enquanto explora os movimentos do próprio corpo. Na vitrine ao lado, uma mulher olha fixamente para o horizonte. Ela é uma boneca sexual robótica, que repete continuamente o manual de instruções para seu funcionamento.

A áurea de cabaré futurista, que ora parece uma distopia, ora um sonho, permeia todo o percurso de "Autorretrato", espetáculo imersivo que ocupa o edifício de arquitetura centenária Central 1926, na Praça da Bandeira.

O visitante é convidado a passear pelos ambientes, cada um com cenas e personagens próprios. A iluminação em tubulares neon, somada aos figurinos chamativos e a vista para o centro da cidade através das enormes janelas do prédio antigo, ajudam a estabelecer o cenário de ficção científica.

O mito grego de Narciso, homem lindo que teria uma vida longa desde que nunca visse seu próprio rosto, foi o escolhido para provocar a reflexão sobre o olhar para si próprio. Certo dia, ao parar para beber água de um lago, deparou-se com seu reflexo e ficou paralisado às margens da fonte, mirando-se até morrer.

"O mito tem várias leituras. Narciso pode ter definhado após se apaixonar pelo próprio reflexo, mas ele também pode ter enxergado um outro nele. Ele não se aprofunda em si, não mergulha no lago e definha na superfície de si mesmo", diz Hirsch.

O impacto da tecnologia na forma como enxergamos nossa própria imagem, por meio de selfies e das redes sociais, foi o ponto de partida para a criação do espetáculo, afirma o diretor.

Exemplo disso é a cena que ocorre no porão do percurso. Um dançarino, interpretado pelo performer Kenji Ogawa, faz uma coreografia ininterrupta em frente a um celular, como se estivesse gravando uma dança do TikTok.

Enquanto isso, fora do alcance da câmera de seu celular mas à vista de quem está na sala, um pianista toca seu instrumento, uma personagem tagarela sem parar sobre o mito de Narciso e outro homem faz uma sinfonia utilizando taças de água.

A ocorrência de cenas simultâneas no mesmo espaço, sem que os personagens interajam diretamente, dá a sensação de se estar em um set de cinema, com bastidores e montagem de quadros. No andar superior, em meio a uma neblina, duas obras são expostas de frente uma para a outra. De um lado, o artista Renan Soares pinta, com as próprias mãos, rostos em uma parede branca.

Ainda que usando uma máscara, seus gestos parecem aflitos, como se estivessem se esforçando para representar um conjunto de pessoas com alguma coerência. Na parede oposta, membros do corpo humano brotam das paredes e repetem movimentos robotizados, turbinados por pequenos motores.

Em um corredor, dois quartos de hotel de decoração tradicional estão de frente um para o outro. Em um deles, uma mulher parece entediada com a própria presença, e vai da cama para a penteadeira, da penteadeira para a janela.

Já o quarto que à frente parece ter sido virado de ponta-cabeça, como em um filme surrealista. A penteadeira e a cama estão nas paredes, perpendiculares ao chão, enquanto o papel de parede com arabescos e os quadros estão no solo e no teto.

A desordem geográfica não impede as duas mulheres que ocupam o cômodo de utilizar os móveis, como se estivesse tudo normal. Elas ignoram a presença uma da outra e seguem com seus afazeres. "Às vezes você está dentro de uma relação se adaptando ao que o outro espera de você", afirma Hirsch sobre a performance.

Por fim, há uma sala mergulhada em névoa, impedindo quem entra de enxergar a sua mão ao esticar o braço. Os outros visitantes parecem vultos e é difícil achar a saída. "Era fundo o tal do lago, muito além da lâmina da superfície", narra uma voz desconhecida.

A sensação é de estar no romance "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse, em que o angustiado Harry Haller passa a frequentar um cabaré alemão e, em determinado momento, não consegue mais distinguir o que é realidade e sonho –a cada porta que abre, se depara com uma cena diferente que parece se relacionar, de alguma forma, com seu subconsciente.

Autorretrato: Um espetáculo imersivo sobre o eu de todos nós

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