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Artes Cênicas

Peça usa Machado de Assis para unir tragédia escravista e bolsonarista

'Ensaio sobre o Terror' relê conto 'Pai contra Mãe', sobre homem que sustenta família após capturar escravizada grávida

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Ensaio sobre o Terror

Em "Pai contra Mãe", conto escrito em 1906, Machado de Assis mostra um breve e terrível instante da vida social brasileira no século 19. Um homem branco e pobre, Cândido Neves, tem por ocupação capturar negros escravizados em fuga. Com os ganhos a escassear, ele vive uma situação limite —é despejado de casa com a família e está prestes a abandonar seu filho recém-nascido, já que não tem meios de sustentar a criança.

É aí que ele se depara com uma mulher negra, grávida, fugida, pela qual se pagava vultosa recompensa. A mulher luta com todas as forças, implora para não ser levada de volta. Em vão. É espancada, sob olhar indiferente dos cidadãos passantes, e devolvida.

Rodrigo Scarpelli em cena da peça 'Ensaio sobre o Terror', de José Fernando de Azevedo
O ator Rodrigo Scarpelli em cena da peça 'Ensaio sobre o Terror', de José Fernando de Azevedo, baseada no conto 'Pai contra Mãe', de Machado de Assis - Pedro Martins/Divulgação

Logo ao chegar à casa de seu senhor, a futura mãe cai no chão e aborta o filho que carregava no ventre. Já o pai, com o dinheiro da recompensa, salva o seu de ser dado à adoção.

Na narrativa de Machado, há uma imagem dos mecanismos da escravidão e do racismo no país, como também das dinâmicas sociais terríveis que, ainda hoje, modulam o que somos. "Ensaio sobre o Terror" encara a persistência histórica dessa barbárie e cria um experimento artístico-reflexivo a partir do material literário.

O espetáculo não encena a situação descrita no conto. José Fernando de Azevedo, dramaturgo e diretor da peça, cria um mecanismo teatral no qual um ator branco, Rodrigo Scarpelli, ocupa o centro do espaço e narra, na íntegra, o texto.

Dessa forma, a luz é jogada sobre um elemento decisivo do conto —o narrador, voz que expõe os fatos em tom sóbrio, aparentando neutralidade descritiva, mas que Machado de Assis logo dá a ver se tratar de uma voz parcial, simpática aos modos oficiais do discurso e que, nas palavras do diretor do espetáculo, "naturaliza a brutalidade".

O ator, contudo, não é só o narrador do conto. A encenação faz com que diversas camadas se sobreponham em cena. Desde o início, Scarpelli não esconde que está ali, um artista branco disposto a confrontar sua participação nesse sistema terrível.

Ele olha nos olhos do público e fala sobre os privilégios e dilemas de sua situação. Ao mesmo tempo, o espetáculo deixa antever também um fracasso inevitável, uma "ilusão" de solidariedade e de compreensão da dor do outro.

É o que sugerem os versos da canção "Este seu Olhar", de João Gilberto, que abre o espetáculo na voz do músico negro Abraão Kimberley, às margens do palco, cantando diretamente para ator branco sentado no centro.

Em mais uma camada da cena, além de narrar e refletir sobre a criação, o ator se põe na pele do Cândido Neves do conto e, num exercício de atualização, também de outro Cândido, contemporâneo, com camisa ensanguentada da seleção brasileira, armado, saído de um daqueles acampamentos delirantes que se multiplicaram pelo Brasil diante de quartéis militares.

É como se "Ensaio sobre o Terror" traçasse um grande arco, branco, que vai de Cândido Neves do século 19, passa pela indiferença protocolar do narrador do conto e chega até o bolsonarismo atual. Este último não seria um fenômeno novo, só mais uma figuração do terror racista a correr, desde sempre, nas artérias do país.

Entretanto, a instigante proposição cênica e reflexiva encontra entraves na realização. O ator luta para tornar vivo o material literário, mas muitas vezes as ações cênicas propostas competem com a palavra.

A literatura de Machado de Assis, repleta de formidáveis ambivalências, disputa espaço com paródias excessivas do bolsonarismo, sempre a reiterar a mesma coisa. A cena híbrida, que conjuga teatro e vídeo e é uma configuração poética marcante nas últimas encenações de José Fernando, aqui não tem grandes consequências e aparece como um tipo de efeito de cena ou assinatura estilística do diretor.

Algumas passagens do texto dramatúrgico são formuladas como grandes lances filosóficos, mas resultam em construções de difícil decifração, muitas vezes fechadas em si mesmas.

Ainda assim, a sensação de trabalho inacabado faz pensar também numa cena-ensaio, aberta, em construção, interessada em dar forma artística ao pensamento crítico sobre o Brasil, sobre o racismo, sobre o terror de nossa vida social.

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