Descrição de chapéu Artes Cênicas Zé Celso

'Zé Celso morreu como um acontecimento', diz Renato Borghi, fundador do Oficina

Aos 86 anos, o ator relembra a criação do grupo, fala sobre a velhice e prepara uma peça inspirada em Oswald de Andrade

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O ator Renato Borghi, 86, na plateia do espaço Itaú Cultural Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Renato Borghi é notívago. Aos 86 anos, um dos mais importantes atores do país não tem tempo de ir ao teatro. No silêncio da madrugada, ele estuda a obra do modernista Oswald de Andrade pensando em como escrever a sua nova peça, "Alegria à Prova dos Nove", ainda sem data de estreia.

Em 1959, o ator carioca conheceu José Celso Martinez Corrêa, morto há um mês, vítima de um incêndio. Na faculdade de direito, a dupla se juntou a Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad para fundar o Teatro Oficina, companhia que revolucionou as artes cênicas brasileiras. Borghi redimensiou o método de atuação teatral da época, ajudando a definir a linguagem poética do grupo.

O ator Renato Borghi, 86, durante aquecimento de voz no palco do espaço Itaú Cultural - Folhapress

Dirigido por Zé Celso, ele atuou nas peças históricas "Pequenos Burgueses", de Máximo Gorki, "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, e "As Três Irmãs", de Anton Tchekhov. Com seu diretor e amigo, dividiu um apartamento durante 14 anos, firmando o pacto de viver só e para o teatro.

Numa noite de julho, Borghi concedeu uma entrevista em seu apartamento, nos Jardins, na região central de São Paulo. Ele lamentou a morte de Zé Celso e disse ter medo da própria morte. Rememorou os sonhos do Oficina, falou sobre a sua saída da companhia e reafirmou a certeza no teatro de Brecht. Em setembro, ele atua em "O que nos Mantém Vivos?", roteiro com cenas do autor alemão, na passarela do Oficina.

Qual é a dimensão da morte de Zé Celso para a vida teatral brasileira?
A morte é banal, acontece de uma maneira inesperada. A morte dele, ao contrário, não foi banal. Quem poderia pensar que um aquecedor iria assar o Zé Celso?

Ele morreu como um grande acontecimento, queimado, num incêndio, levado pelos bombeiros. Ocupou os jornais e a televisão. Zé Celso foi midiático até para morrer. O velório também não foi comum. Ele morreu com o Oficina lotado, do jeito que ele gostava de ver. Foi uma comoção muito forte.

O que a morte de Zé Celso fez você pensar sobre a sua própria morte?
A velhice não é boa, cara. Você vai chegar lá. Eu era muito mais feliz do que sou hoje. Eu tenho que estar mais tranquilo, porque é uma coisa que está perto. Não tenho muito tempo pela frente. Tenho certeza de que daqui a pouco eu vou, espero que não seja queimado. Eu tenho medo. Essa passagem não é uma coisa tranquila, é um mistério. É difícil acreditar que acabou. E toda a minha energia? E tudo o que eu construí?

Na gaveta onde enterrei minha mãe, só havia uma lacraia, uma barata branca e uns ossinhos. E mais nada. É duro. Será que vai acabar tudo ali?

Renato Borghi, ator de 'O Rei da Vela', nas montagens e no filme de José Celso Martinez Corrêa - Folhapress

Analisando historicamente, em que medida as aspirações políticas e culturais do grupo fundador do Oficina realmente se concretizaram?
Não se concretizaram. Queríamos coisas mais ambiciosas do que as que estão acontecendo agora. Nós queríamos uma sociedade mais igualitária, socialista mesmo. Artisticamente, tínhamos um sonho com a interpretação de grandes personagens. A paixão que o Oficina teve agora no final foi a mesma que nós tínhamos no começo. Era uma utopia.

A montagem de 'As Três Irmãs', em 1972, foi a sua última no Oficina. Por que o senhor brigou com Zé Celso e decidiu sair da companhia?
Zé Celso começou a experimentar a teoria do Living Theatre no coro. Em cena, as pessoas tiravam a roupa, batucavam tambores do candomblé, era um Carnaval e o início do desbunde do Oficina. Fiquei uma semana em cartaz. Depois de uma sessão, fui ao camarim, me olhei no espelho e perguntei "Renato, é isso que você quer para você?". Eu sou apaixonado pelo teatro. Tudo caminhava para a negação do personagem. Aquilo me violentava. Não era eu. Todo mundo queria agradar ao Zé Celso, e eu queria o meu teatro.

Qual é a sua avaliação sobre a influência do Living Theatre no Oficina?
Eu de cara não gostei. Era uma coisa de colonizador e colonizado. Eles queriam impor o modo de ver a vida, de ver o teatro e de criar o espetáculo. Essa coisa de contato físico com a plateia era uma coisa meio maconhada, meio drogada, uma outra esfera de sensibilidade.

Como foi a reaproximação com Zé Celso?
Ficamos oito anos sem nos falar. Ele não respeitou o meu teatro e fiquei muito magoado. Ele me atropelou. Depois, compreendi que a história nos separou. Foi ficando difícil, ele era tão meu amigo, tão próximo. A separação era falsa. E um dia a gente rompeu essa distância.

Há 60 anos, você viveu Piotr em 'Pequenos Burgueses', de Máximo Gorki, com direção de Zé Celso. Como ele subverteu o método de Stanislávski, que vocês aprenderam com Eugênio Kusnet?
Stanislávski estabeleceu que o princípio da atuação era a vontade do ator, ou seja, o que o ator quer na cena. Zé Celso chegou ao ensaio e revolucionou esse método. Ele reconheceu o desejo da atuação, mas concebeu a contravontade. O ator não deseja apenas uma coisa. Ele pode atuar, pensando em algum problema existencial. Zé Celso vislumbrou uma dialética, uma batalha interior na atuação.

Renato Borghi, 86, que encena 'O que nos Mantém Vivos?', no Itaú Cultural, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Qual foi a sua contribuição para a linguagem teatral do Oficina?
Um aprofundamento na arte do ator. Acreditei na possibilidade de ser um grande ator. Era algo muito diferente do TBC [o Teatro Brasileiro de Comédia], que trabalhava a inflexão das falas. Nós íamos fundo na vida social e psicológica dos personagens. E todo o repertório do Oficina até a minha saída eu que escolhi. Eu propus "O Rei da Vela" ao Zé Celso, e ele não se ligou imediatamente. A dramaturgia era de fato estranha.

E o que é ser um bom ator?
O bom ator é aquele que quer transmitir alguma coisa. Ele não quer só se exibir. Ele quer provocar o movimento, mexer com a plateia, não deixar sair do teatro da mesma forma.

Filho do presidente da Otis Elevadores, como foi abandonar o conforto da vida no Rio de Janeiro para viver de teatro em São Paulo?
Foi um prazer muito grande a aventura do teatro, mas o ator brasileiro ainda vive muito mal. Eu vivo de teatro, moro de teatro e como de teatro. Mas não tenho grandes garantias da minha existência. Trabalho aos 86 anos não porque gosto, mas porque preciso.

Abelardo 1º, de 'O Rei da Vela', foi o seu personagem de maior sucesso. Agora, o senhor prepara 'Alegria à Prova dos Nove', peça inspirada em Oswald de Andrade. Até que ponto a linguagem tropicalista se tornou uma resolução para o nosso teatro?
Houve uma abertura de possibilidades para nós criarmos a nossa própria Semana de 1922. Nós do Oficina nos beneficiamos muito dessas conquistas. Oswald e Mário de Andrade tornaram a cultura brasileira menos careta.

Depois do Oficina, aprofundou o estudo de Bertold Brecht. Como 'O que Mantém um Homem Vivo?', de 1973, dialoga com a sua peça em cartaz, 'O que nos Mantém Vivos?'
São roteiros com cenas diferentes de Brecht. Agora, eu quis examinar mais a peça "Santa Joana dos Matadouros". Eu acredito nesse teatro, porque são peças que tratam do nosso tempo. Não faço teatro porque acho bonito. Teatro precisa intervir na realidade. Por isso, eu interpreto, no segundo ato, Abelardo 1º, de "O Rei da Vela", e contraceno com um ditador, que seria Bolsonaro.

Como foi encenar Brecht em plena ditadura?
A censura me encheu o saco. Fui a Brasília protestar e fui expulso de lá. Toda a peça tinha que ser, um dia antes, apresentada à censura. Depois, eles iam à estreia ver se estávamos seguindo as ordens. Cortaram muitas passagens de Brecht. Eles sempre estavam à espreita, então foi uma relação muito difícil.

Para a cena teatral brasileira, o que significou a ascensão do governo Lula?
Depois de quatro anos de Jair Bolsonaro no poder, Lula é um sinal de esperança. Eu envelheci muito com Bolsonaro e pandemia. E o Zé Celso também. A gente, que é do teatro, se apagou no governo Bolsonaro. Eu fiquei muito recolhido.

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