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Alejo Carpentier escreve novela complexa e magnífica em 'O Cerco'

Livro embalado ao som da 'Eroica' de Beethoven e ambientado nos anos entre ditaduras cubanas exige releitura imediata

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Laura Janina Hosiasson

Professora do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo

O Cerco

  • Preço R$ 74,90 (136 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Alejo Carpentier
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Silvia Massimini Felix

Publicada em 1958, a novela "O Cerco", do grande escritor cubano Alejo Carpentier, brinca com uma circularidade formal que já ensaiara antes, consistente em congelar a cena do início, retomando-a no fim, para inserir a narrativa principal entre ambas as pontas.

Esse já era o mecanismo de um de seus contos iniciais, "Viagem à Semente", de 1944, em que a demolição de um velho casarão é deixada num stand by enquanto se desenrola, numa cronologia invertida, a história do ilustre morador.

homem mais velho atrás de pilhas de papéis
O escritor cubano Alejo Carpentier em 1976 - Divulgação

Em O Cerco —no original, "El Acoso"—, a cena que emoldura o relato é a execução da sinfonia "Eroica" de Ludwig van Beethoven, num teatro de Havana. Carpentier disse em várias oportunidades que pretendeu estruturar a novela como uma sonata em três movimentos.

No livro, eles vão antecedidos por um número romano: no primeiro se expõem os três motivos centrais, o de um bilheteiro e aprendiz de músico, o de um homem perseguido e o de uma prostituta, único personagem com nome próprio, Estrella. O segundo movimento contém 13 variações que desenvolvem esses três temas; e o terceiro apresenta a conclusão.

Abrem o livro três cenas. A primeira, no vestíbulo da sala de concertos, pouco antes de começar a sinfonia. O ponto de vista é do bilheteiro que mistura impressões sobre o público que chega ao teatro; a leitura de trechos de uma biografia de Beethoven, que está lendo; as lembranças de sua infância e reflexões sobre música.

Tudo isso é interrompido pela súbita aparição de um indivíduo que joga uma nota alta de dinheiro sem aguardar o bilhete e se lança na sala. Atrás dele entram outros dois sujeitos antes que a porta se feche completamente.

A segunda cena traz um monólogo interior em tom paranoide e agônico de alguém que está dentro da sala escutando a sinfonia e se sente acossado. O leitor só conseguirá entender que se trata de duas vozes diferentes na terceira cena, quando ressurge o bilheteiro, agora correndo para a casa da prostituta com a nota que acaba de receber.

Os treze segmentos que se seguem —e constituem a parte central— se organizam para contar a história do perseguido, um ex-estudante de arquitetura transformado em revolucionário e depois em guerrilheiro para terminar como uma espécie de sicário que, preso e submetido à tortura, se torna finalmente um delator encurralado pela culpa e pelos ex-comparsas.

O cenário de fundo é a Havana da década de trinta, convulsionada por guerrilhas e facções criminosas que disputavam o poder após a derrocada do ditador Machado, antes da chegada de Fulgencio Batista.

A ação desenvolve-se principalmente em três espaços —o livro se organiza em tríades—, incluindo: um prédio de construção recente onde mora o bilheteiro; o mirante de um casarão em ruinas onde se refugia o acossado; e a casa de Estrella, onde ela costuma receber os dois sem que eles tenham notícia dessa coincidência.

Trata-se, na verdade, de uma estrutura extremamente complexa do ponto de vista técnico, em que se misturam monólogos interiores, relatos em terceira pessoa, diversos tempos narrativos e mudanças repentinas de pontos de vista. O leitor está diante de um quebra-cabeça intrincado que ele deverá armar a partir de pistas nem sempre evidentes à primeira vista.

O esquema geral lembra em certos momentos o de um romance policial, só que aqui as questões disparam para uma reflexão ético-filosófica em torno do destino heroico e da traição, o crime e o castigo, o medo e a fome, entre outros.

Não há respiro. Não há parágrafos. As frases aglutinam-se num mesmo turbilhão sem fôlego que remeda a sensação de acosso do protagonista. A escrita vai assim num crescendo em que as reiterações e paralelismos ajudam o leitor a se nortear dentro de um fluxo nada cronológico.

A dicção barroca característica do escritor cubano, de profusão descritiva e longas séries de vocábulos, vai na contramão de uma prosa econômica, exigindo uma leitura detida e atenta. Comparecem os minuciosos detalhes arquitetônicos e elementos de erudição musical —marcas registradas de Carpentier— que conferem uma carga visual e sensorial impressionante às cenas. É, de fato, na releitura que esta história desabrocha em sua inteira beleza.

Vai aqui a sugestão para o leitor ouvir os quatro movimentos da tremenda terceira sinfonia "Eroica" de Beethoven —cujos dois primeiros acordes são também descritos—, enquanto lê e relê esta magnífica novela.

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