Descrição de chapéu O Poder do Agro

Artistas questionam o agro em obras que miram vida no campo na era pós-Bolsonaro

Criação de gado e música sertaneja viram temas de pinturas e vídeos que retratam o interior com admiração ou acidez

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

'123', aquarela sobre papel de Renata Egreja

Detalhe de '123', aquarela sobre papel de Renata Egreja Ronaldo Couto

São Paulo

Não é só nas novelas, nas músicas e na moda —nos últimos anos, a influência do agronegócio tem se estendido também para as artes visuais, num movimento que parece se amplificar depois da ascensão de Jair Bolsonaro. Museus do interior do Estado de São Paulo, galerias na capital paulista e até uma bienal em Yerevan, a capital da Armênia, exibiram recentemente pinturas, instalações e vídeos que versam sobre o interior rural do Brasil.

Os artistas que refletem sobre o campo nasceram, foram criados ou têm relações profundas com as áreas distantes das capitais, e a maneira com que o interior aparece nas suas obras pode ser tanto crítica como de admiração. Uma característica frequente é o questionamento do poder do agro.

'Gênesis' (2023), pintura de Fábio Baroli
'Gênesis' (2023), pintura de Fábio Baroli - Fábio Baroli/Zipper Galeria

Numa exposição recente na galeria Zipper, em São Paulo, uma pintura de um boi em tamanho real foi posta no meio do espaço expositivo. A figura estava ali de propósito, para atrapalhar a circulação e incomodar mesmo, tapar a visão das outras telas da mostra, conta Fábio Baroli, o artista.

"É um trabalho pensado para dar uma ideia de peso, não para ser pendurado na parede. É um bicho muito grande", ele diz, acrescentando que a pintura pode ser um ponto de partida para uma reflexão sobre questões sociais mais amplas, como o território ocupado pelo gado no Brasil e o que isso significa.

Baroli cita dados oficiais que indicam que há mais bois e vacas do que gente no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, em 2021 havia 224,6 milhões de cabeças de gado, número expressivamente maior do que os 203 milhões de brasileiros, população apontada pelo Censo de 2022.

Nascido em 1981 num bairro rural de Uberaba, cidade que hoje é uma potência do agronegócio em Minas Gerais, Baroli também mostra em seu trabalho afeto com os personagens do interior. Numa pintura da mostra, vemos um caipira mirando o horizonte enquanto segura duas galinhas pelos pés. Em outra, um rapaz de chapéu de caubói descansa sem camisa deitado num banco, a cabeça escorada num tijolo.

O olhar de acolhimento para a vida rural aparece também nas obras de Renata Egreja, embora de maneira menos figurativa. A artista pinta formas e ornamentos coloridos inspirados, segundo ela, pelas toalhinhas e crochês feitos pelas mulheres de sua família numa fazenda em Ipaussu, no interior de São Paulo, onde ela vive e trabalha. Sua paleta de cores seduz o olhar, mas ao mesmo tempo guarda um tom crítico.

"As mulheres aprendiam a tricotar enquanto os homens aprendiam a fazer dinheiro", ela conta, ressaltando o predomínio masculino entre os proprietários de terra na região onde mora, a cerca de 300 quilômetros da capital paulista. Criada numa família produtora de soja, trigo e milho comandada por uma mãe forte, Egreja relata que ela sempre lutou contra a misoginia que sofreu no meio agro, embora tenha vendido muitas obras para clientes deste universo.

Isto até o momento em que ela apoiou o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. "Para eles, eu era uma artista para chamar de nossa e de repente eu vou lá e faço o L na internet. Recebi todo tipo de xingamento que você possa imaginar, os colecionadores ficaram com raiva", diz. A artista de 39 anos está agora com uma exposição em cartaz no museu Fama, em Itu, com um conjunto de pinturas abstratas e uma instalação sobre o aborto.

Quem também questiona o imaginário associado ao agronegócio é a dupla Vivian Caccuri e Gustavo von Ha. Durante a pandemia, os artistas formaram o duo Vivian & Gustavo, uma paródia das duplas sertanejas. Sob esta alcunha, produziram uma série de vídeos —exibidos no festival de arte sonora Dystopie, em Berlim, e na Bienal de Yerevan—, nos quais debocham dos valores tradicionais promovidos pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Artistas Vivian Caccuri e Gustavo Von Ha em vídeo no qual interpretam a dupla sertaneja Vivian & Gustavo
Vivian Caccuri e Gustavo Von Ha em imagem do vídeo no qual vivem a dupla sertaneja Vivian & Gustavo - Vivian Caccuri e Gustavo Von Ha

Num dos vídeos, o estilista Alexandre Herchcovitch aparece no papel de "pessoa de bem" falando sobre decadência moral. Em outro, um coral formado pela Mona Lisa, por Vladimir Putin, o presidente russo, e pela rainha Elizabeth 2ª, do Reino Unido, dubla "Evidências", clássico de Chitãozinho & Xororó. A dupla de artistas aparece interpretando uma faixa de Gusttavo Lima, o pivô da "CPI do sertanejo" no ano passado.

Os vídeos juntam imagens e memes disponíveis na internet com cenas captadas pela dupla, numa edição estilo colagem. Por um lado, o trabalho é uma reflexão de "como o sertanejo virou uma plataforma de comunicação cultural com o Brasil", afirma Caccuri. Por outro, pensa sobre a lógica das redes sociais, "um ambiente onde o bolsonarismo soube se articular de forma magnífica, com consequências sociais e políticas aterrorizantes", acrescenta Von Ha.

Sátiras à parte, vale notar como o boi, o símbolo maior do agronegócio, aparece em muitas obras de arte, sejam de agora ou de décadas passadas. Em 2015, Frederico Filippi apresentou um vídeo no espaço Pivô, em São Paulo, no qual um carro equipado com alto-falantes circula de madrugada por ruas industriais da zona leste da capital paulista emitindo mugidos de vaca, como se fossem lamentos.

Os sons foram captados no Pantanal, conta o artista, acrescentando que queria pensar sobre a sociedade das metrópoles brasileiras e a do interior. "É como se fossem dois países distintos. A ideia de civilização está na costa, e a parte do agro, que é quem avança contra as florestas, seria um lugar afastado do centro de pensamento do país. A obra é uma crítica à soberba da separação dos universos intelectual e agropecuário, quando na verdade eles são codependentes na criação de riqueza."

Num panorama histórico, um nome referência é Humberto Espíndola, sul-mato-grossense que desde o final da década de 1960 destaca o boi em suas telas. Ele conta ter retratado o animal como um símbolo de poder, como se fosse um minotauro, ditador ou general, e não de forma rural ou romântica.

Pintar o gado, acrescenta o artista, era também uma forma de pensar a identidade da região do Mato Grosso —antes da separação do Estado com o Mato Grosso do Sul—, assim como a pop art de Andy Warhol mostrava o jeito de viver americano. Naquela época, isso significava encarar a ditadura no Brasil.

Espíndola pintou bois travestidos de generais e políticos, numa verve crítica que levou alguns de seus quadros a serem censurados de exposições em Salvador, Curitiba e Belo Horizonte, além de uma outra em Paris, dado que ele precisava do aval do Itamaraty para enviar a obra para o exterior. Mas o artista expôs na Bienal de Veneza, uma das principais exposições de arte do mundo.

Em paralelo às suas pinturas, Espíndola estudou com afinco seu objeto artístico. "O boi esteve em todas as civilizações, do passado até agora. O bovino foi a carne escolhida pelo homem como predileta desde o caçador. Ele garantia uma sustentação —a carne, o leite, o queijo. Também puxava os arados da agricultura", diz. "Era tratado como deus em civilizações do passado e como divindade no Egito."

Renata Egreja - Cores do Interior

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.