Como 'Terra e Paixão' encara a polêmica do agronegócio, que desperta amor e ódio

Nova novela das nove da Globo, que busca superar fracasso de 'Travessia', coroa safra de obras rurais de viés contestador

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Bárbara Reis como Aline em cena de 'Terra e Paixão', de Walcyr Carrasco

Bárbara Reis como Aline em cena de 'Terra e Paixão', de Walcyr Carrasco João Miguel Júnior/Divulgação

Rio de Janeiro

A câmera que atravessa a imensidão esverdeada de pés de soja rumo à estrada de terra avermelhada não demora a estabelecer que, em "Terra e Paixão", a nova novela das nove da Globo, estamos longe da neurose do asfalto de "Travessia" e bem perto dos peões de "Pantanal", em Mato Grosso do Sul.

Mas a sensação de paz causada pelo céu tingido por raios dourados é breve. O folhetim, escrito por Walcyr Carrasco, antecipa o remake de "Renascer" e coroa uma série de obras ambientadas no campo que se espalham por todos os pilares da cultura num dos momentos mais delicados do Brasil para o ruralismo.

homem parado em frente a um trator em cena de Terra e Paixão
Cauã Reymond em cena de 'Terra e Paixão', de Walcyr Carrasco - João Miguel Júnior/Divulgação

Embora histórias regionalistas sejam uma tradição de décadas, a nova safra é pela primeira vez fruto tanto da exaltação do agronegócio, cultuado por Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos, quanto uma resposta contestadora à sua política agrária, que Lula prometeu mudar profundamente a partir de sua reeleição.

Se, por um lado, o agronejo de Ana Castela que desbancou Marília Mendonça no topo das paradas musicais louva a vida no campo, romances como "Torto Arado", o livro brasileiro mais vendido dos últimos anos, contestam o Brasil refém do agronegócio, assim como "Agropeça", do grupo Teatro da Vertigem, que estreou neste fim de semana no Sesc Pompeia, em São Paulo.

O questionamento também atravessa as artes visuais, ainda que de maneira menos figurativa do que em obras como as de Cândido Portinari. Exemplo disso são as tapeçarias de Vivian Caccuri protagonizadas por mosquitos e as instalações de Gustavo Von Ha com cerâmicas, vidros e ossos que refletem a dor gerada pela tentativa de conquistar ou manter um pedaço de terra.

É a mesma aflição da protagonista de "Terra e Paixão", Aline, vivida por Bárbara Reis. Ela é uma professora de matemática que precisa aprender a cuidar da pequena fazenda da família depois que seu marido é assassinado por ordem dos personagens de Tony Ramos e Gloria Pires, Antônio e Irene La Selva, que mandam e desmandam na região.

"Aline é o retrato de muitas mulheres que estão sozinhas e querem o melhor para sua família. Mesmo que não seja do meio agrário, todas vão se identificar com ela", diz Reis, de 33 anos, que vive a segunda protagonista negra de uma novela das nove da Globo e seu primeiro papel de destaque.

Em paralelo, "Terra e Paixão" vai retratar também a luta pela terra dos povos originários, com Daniel Munduruku, um dos líderes e escritores indígenas mais respeitados do país, atuando tanto diante das câmeras, no papel do pajé Jurecê Guató, quanto atrás delas, prestando consultoria aos produtores da novela.

São discussões complexas que detonam reações inflamadas e passionais tanto à esquerda quanto à direita, o que pode pôr o folhetim numa arena delicada, na avaliação da professora Mariana Chaguri, da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, no interior paulista, que é especialista em sociologia
rural e em sociologia da arte.

"Nunca foi fácil lutar pela terra no Brasil, mas hoje existe uma tentativa mais forte de interditar o debate. Nos últimos anos, a gente desassociou a luta pela terra de um direito social e a transformou num direito moral. É como se tivesse terra só quem merecesse e trabalhasse. Como se lutar pela terra fosse
coisa de vagabundo", afirma.

O cenário atual, ela diz, é mais delicado do que aquele em que Benedito Ruy Barbosa se viu na década de 1990 com "O Rei do Gado" ao escrever sobre a reforma agrária e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

Não só por causa da polarização política que o país vive, mas pelo papel cada vez mais ativo do espectador em relação às novelas, que têm seus capítulos escritos sob a influência da reação do público.

Walcyr Carrasco, o roteirista, não demonstra preocupação. Por email, ele se restringe a dizer que não está escrevendo "uma novela sobre o agronegócio", mas "uma história de amor, de luta entre irmãos e de grandes emoções", inspirado pela infância no campo.

O diretor artístico Luiz Henrique Rios ainda afirma que não está fazendo "um libelo do Brasil", em entrevista nos estúdios da Globo, mas vai além e conta por que não teria motivo para temer o público.

"Novela não tem o papel de discutir conflitos, mas de dar existência a eles", diz o dramaturgo. "O princípio que a gente tem usado na Globo é que, toda vez que temos um personagem que pensa ‘A’, temos outro que pensa ‘B’. O irmão e os filhos de Antônio se contrapõem à visão dele. Não há um posicionamento de ser a favor ou contra", acrescenta.

José Luiz Villamarim, diretor do núcleo de teledramaturgia da Globo, lembra que "o Brasil é múltiplo, e o rural pode ser tão amplo quanto".

Suas palavras são amparadas pela visão de Chaguri, a professora da Unicamp. Ela diz acreditar que a nova novela da Globo vai poder ajudar a romper com as visões polarizadas das pessoas.

"A sociedade vê o agronegócio de maneira muito maniqueísta. Não por culpa da sociedade, mas porque a frente parlamentar do setor é um ator muito forte e tem interesse em incentivar essa visão, em embaralhar o produtor de arroz e feijão, ou seja, de alimento, com o de soja, que se preocupa com commodities para exportação", afirma.

Os personagens Aline (Barbara Reis), Jonatas (Paulo Lessa), Daniel (Johnny Massaro) e Caio (Cauã Reymond), de 'Terra e Paixão'
Os personagens Aline (Barbara Reis), Jonatas (Paulo Lessa), Daniel (Johnny Massaro) e Caio (Cauã Reymond), de 'Terra e Paixão' - Globo/Divulgação

O elenco também quer quebrar essa polarização. O ator Cauã Reymond, que interpreta o primogênito de Antônio La Selva, Caio, diz que "a história é uma crítica ao Brasil antigo da violência e do desrespeito com os mais fracos", enquanto Johnny Massaro, que interpreta seu irmão, Daniel, afirma que se "desobrigou de ter uma opinião muito formada" sobre o debate.

"Estou aprendendo com a própria novela. Acho que precisamos chegar a um meio termo, porque o agronegócio é muito importante, mas estamos num mundo com recursos finitos", diz Massaro.

Ao mesmo tempo que pode ser um campo minado, o cerne de "Terra e Paixão" é também o que pode levar a Globo a reconduzir a faixa mais nobre de sua grade de programação ao sucesso de "Pantanal", que fidelizou o público como não se via desde "Avenida Brasil", que foi ao ar há dez anos.

"Travessia", escrita por Gloria Perez, teve capítulos que registraram a pior audiência da história para uma novela das nove da emissora. Desde "Jerônimo, O Herói do Sertão", produzida ainda para o rádio, nos anos 1950, novelas rurais costumam ser garantia de sucesso, afirma Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo.

Isso porque, diz o pesquisador, elas "conseguem unir o escapismo da cidade grande em direção aos cenários paradisíacos do interior, que vem do romantismo, com a denúncia das mazelas sociais do campo, do modernismo".

Não é à toa que o cenário gera identificação. Cerca de 15% da população brasileira —isto é, quase 33 milhões de pessoas— vivem em áreas rurais, nas estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Outra parte considerável dela, vinda do êxodo rural das décadas de 1960 a 1980, hoje com idade entre 40 e 60 anos, tem forte conexão afetiva com o campo.

São cenários idealizados pelo telespectador, reitera Chaguri, a professora, sobretudo por causa dos valores morais de pureza que supostamente predominam nesses locais.

É também tido como um ambiente onde prevalece o amor, um elemento expresso de maneira acentuada nas trilhas sonoras de novelas da Globo, inclusive na de "Terra e Paixão", que tem como tema de abertura "Sinônimos", gravada por Chitãozinho & Xororó com a participação de Ana Castela, a maior representante do agronejo.

Ainda que seja uma escolha incontornável para uma novela no campo, o sertanejo é em si outra estratégia de seduzir os espectadores. É, afinal, a música mais ouvida do país. No ano passado, oito das dez canções mais tocadas no streaming eram do gênero.

Também pode ser um chamariz a escalação de Walcyr Carrasco. Suas novelas costumam ser campeãs de audiência, caso de "Verdades Secretas", a última que escreveu, e "Amor à Vida", a primeira que fez para a faixa das nove.

São comuns em suas histórias temas polêmicos, que dividem a opinião da crítica e do público, mas fazem sucesso. Foi ele que, em "Amor à Vida", escreveu o primeiro beijo entre dois homens para uma novela da Globo. Naquela mesma trama, tratava de incesto, alcoolismo, HIV e uma série de outras controvérsias.

homem com roupas rurais no campo
Tony Ramos como Antônio La Selva em cena de 'Terra e Paixão' - João Miguel Júnior/Divulgação

O autor não quis revelar suas cartas em entrevista, mas, a partir das sinopses e dos trailers de "Terra e Paixão", é possível notar que a novela vai ter um triângulo amoroso entre irmãos, um personagem gay no campo —Kelvin, um garçom interpretado por Diego Martins, vindo de um reality show de drag queens— e uma stripper que ganha a vida em sites como o OnlyFans —Anely, interpretada por Tatá Werneck.

A nova novela marca ainda uma reunião de grande parte dos últimos medalhões da Globo, em meio à estratégia recente da emissora de não renovar os contratos de exclusividade com supersalários.

Estão lá, além de Tony Ramos e Gloria Pires, Susana Vieira, que interpreta Cândida, a dona do principal bar da cidade, e os mais novos, caso de Cauã Reymond e Johnny Massaro, que interpretam os filhos do casal La Selva.

Recorrer à nostalgia —de temas, músicas ou elenco— é a principal estratégia da indústria do entretenimento hoje, com remakes e reboots que se multiplicam não só na televisão, mas no cinema e no streaming. Embora não costume agradar à crítica, dificilmente deixa de fazer sucesso e encher o bolso dos estúdios.

O repórter viajou a convite da TV Globo

Terra e Paixão

  • Quando Estreia nesta segunda-feira, às 21h20, na TV Globo
  • Classificação 14 anos
  • Autoria Walcyr Carrasco
  • Elenco Bárbara Reis, Gloria Pires, Tony Ramos, Cauã Reymond e Johnny Massaro
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Luiz Henrique Rios
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