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'Iracema' discute como o Brasil foi fundado por meio de heroína complexa

Romance incontornável de José de Alencar está na Coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira

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Porto Alegre

A jovem está armada quando um estranho aparece. Hábil, ela o fere. "A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido", escreveu José de Alencar.

Uma mulher pronta para atacar não era exatamente o tipo feminino idealizado no Brasil de 1865, ano de publicação do romance "Iracema". Mas é assim que o autor coloca a heroína em ação logo no início da trama deste clássico incontornável da literatura brasileira.

estátua de mulher indígena sob coqueiros contra o pôr do sol
Estátua de Iracema, personagem de José de Alencar, na praia de Mucuripe, em Fortaleza - Katia Calsavara/Folhapress

"Alencar constrói uma personagem que não é uma dondoca, é uma heroína indígena. Embora a personagem seja europeizada nos traços e em vários aspectos, ela não é uma donzela. Ela tem atitude. Quando encontra Martim, Iracema decide dar uma flechada nele. Além disso, ela decide ficar com o estrangeiro e vai para a guerra contra a própria tribo", explica André Tessaro Pelinser, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O livro integra a Coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira e chega às bancas no domingo, dia 10.

É bem verdade que Iracema foi descrita também como "a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira", mas ela não era somente isso.

Filha do pajé Araquém e protetora do "segredo de Jurema", ela deveria se manter intocada —uma estratégia de Alencar para manter certa moral cristã importada. Mas ela quebra o tabu da virgindade ao seduzir Martim em uma rede.

"Ela sabe o que está fazendo. Podemos, inclusive, questionar essa ideologia do cavaleiro que não sabia, que poderia ser visto como uma vítima. Entretanto, o que chama atenção é que a personagem tem um nível de complexidade e paga o preço por isso", analisa Pelinser.

Iracema é, não por acaso, anagrama de América. Na obra, Alencar constrói uma grande metáfora da nação que havia se tornado independente apenas 43 anos antes. Por meio dos personagens, o escritor cria a representação do processo da colonização, explica o professor.

"O filho de Iracema e Martim pode ser lido metaforicamente como o primeiro brasileiro miscigenado, do continente América e do Brasil. Não é à toa que Alencar escolhe o nome de Moacir, que Iracema chama de 'filho do sofrimento'."

A linguagem adotada por Alencar é inegavelmente poética. Um beijo na boca, por exemplo, é descrito como "dois frutos gêmeos dos araçá, que saíram do seio da mesma flor". Isso porque "Iracema" era inicialmente planejado como um poema, o que não se concretizou.

Há, todavia, quem enxergue o gênero poético dentro da prosa. "Esta fábula da miscigenação não deixa de ser um poema épico: a história de amor proibido entre a jovem sacerdotisa de Tupã e o jovem súdito de Filipe III é desfiada com especial atenção ao ritmo das frases, às metáforas e aliterações", afirma a escritora Noemi Jaffe na contracapa do volume da Coleção Folha.

Mesmo que a beleza tropical transborde nas páginas, com Iracema "embalando-se nas ramas do maracujá", Alencar criou uma obra que não é necessariamente alegre ou inocente. As consequências da colonização europeia dialogam diretamente com o tempo presente.

Em "Iracema" o leitor encontra também a fome do bebê Moacir, que Iracema tenta combater amamentando filhotes de cães para que puxem seu leite —contexto trágico que remete indiretamente à situação dos yanomami em Roraima, por exemplo. A mãe definha até morrer.

Passado certo tempo, a ave jandaia, que repetia o nome de Iracema, deixa de fazê-lo. "Tudo passa sobre a terra", escreveu Alencar. "É como se a América não se lembrasse de si. É muito potente e premonitório. Que mito nacional é esse que funda uma nação que depois não lembra de si mesma?".

A obra de Alencar suscita o debate sobre como o processo de colonização legou a destruição ao usar a metáfora da memória apagada. "Será que nossa origem é um projeto falho desde seu início, baseado na dizimação do indígena?", pergunta Pelinser.


COMO COMPRAR

Site da coleção: colecoes.folha.com.br

Telefone: (11) 3224-3090 (Grande São Paulo) e 0800 775 8080 (outras localidades)

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