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Artes Cênicas

'Isolda/Tristão' exibe força de Clarice Assad na composição brasileira

Ópera em cartaz no Theatro Municipal, ao lado de 'Ainadamar', encara Richard Wagner em cenário de campo de refugiados

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'Isolda/Tristão' e 'Ainadamar'

Em cartaz até sábado no Theatro Municipal, a ópera "Isolda/Tristão", de Clarice Assad, com libreto de Marcia Zanelatto, encara frontalmente o "Tristão e Isolda", de 1865, de Richard Wagner, obra cuja importância para o desenvolvimento da linguagem musical ultrapassa seu destaque no gênero lírico.

Encomendada pela direção do teatro, a criação de Assad é apresentada juntamente com "Ainadamar", do argentino Osvaldo Golijov. Em ambas a Orquestra Sinfônica Municipal é regida por Alessandro Sangiorgi. Guilherme Leme Garcia assina a direção cênica da obra da brasileira e Ronaldo Zero a do argentino.

Atores da ópera 'Isolda/Tristão', escrita pela compositora brasileira Clarice Assad
Atores da ópera 'Isolda/Tristão', escrita pela compositora brasileira Clarice Assad - Stig de Lavor/Divulgação

Em Wagner, a fusão dos amantes no segundo ato conduz à permutação de nomes, o que antecede à virtual transcendência das individualidades: "Eu, Isolda", diz Tristão; "eu, Tristão", diz Isolda. E depois —"nunca mais Isolda, nunca mais Tristão, sem nome, sem separação".

No ótimo texto de Zanelatto, o diálogo sela o amor em parceria, em que cada pessoa se mantém íntegra, com olhar no futuro. Isolda diz "nessa mão eu trago a dor, nessa eu trago o amor, você poderá suportar?". "Se eu falar de amor, você nega o ouvido?", ela pergunta na sequência. Tristão diz "se eu negar, vivo morto o resto da vida".

O original nunca é colado, adaptado nem mesmo citado. A nova narrativa funde também o tempo mítico com um engajamento ativo (até mesmo ativista) na história de nosso tempo, ao tematizar os dilemas dos milhões de seres humanos que sobrevivem como refugiados em todo o mundo, separados por muros que os impedem tanto de voltar como seguir adiante.

Assad costura com virtuosismo uma grande diversidade de técnicas composicionais e usa vozes solistas, orquestra e coro com criatividade e personalidade.

A música da cena inicial do espetáculo tem força dramática espetacular e, sozinha, pode ser exemplo do potencial da ópera como linguagem hoje. Depois de uma breve abertura orquestral, Isolda, a cantora mineira Melina Peixoto em magnífica atuação, canta da plateia para o coro no palco —o campo de refugiados—, sendo o fosso da orquestra o que nos separa "daqueles com quem ninguém se importa".

Como em Wagner, é o canto feminino que permitirá a travessia —que aqui aposta antes na vida que no além. Isolda conta com a força ancestral da Mãe, no mais extraordinário papel vocal já escrito para a grande cantora Luciana Bueno.

Tristão, o tenor Daniel Umbelino, domina os mares e tem acesso ao reino dos poderosos em que reina Marcos, o baixo Sávio Sperandio. Cada personagem é finamente caracterizada musicalmente.

Aos 45 anos, Clarice Assad recusa tanto o experimentalismo em forma de seita como meras colagens de padrões da música popular urbana, tão comuns em compositores atuantes hoje, especialmente no Brasil.

Mas, sem medo, ela incorpora à tradição da escritura ocidental as texturas e técnicas das músicas populares do mundo. Mergulha antes no étnico, nas tradições ancestrais —no caso desta ópera, especialmente na música nômade do povo romani, os ciganos.

A compositora Clarice Assad
A compositora Clarice Assad - Rodrigo Assad/Divulgação

Dizer que Assad provém de uma família de músicos é muito pouco. Sua tia é a mulher-ritmo-som-poesia Badi Assad. Seu pai é Sérgio Assad, um dos mais importantes compositores brasileiros, e que com o tio Odair Assad criou o principal duo de violões do mundo ao longo de quatro décadas.

Nascida num subúrbio do Rio de Janeiro, ela já viveu em três continentes. Sua música é internacional e ousada e tem estranhamentos sem ser difícil de escutar. Foi alçada a uma ampla visibilidade internacional com o "Concerto para Violino", gravado em 2005 pela solista Nadja Salerno-Sonnemberg.

Chama atenção também seu concerto para percussão "Ad Infinitum", escrito para a renomada solista Evelyn Glennie. Nos Estados Unidos, recentemente a Filarmônica de Los Angeles estreou sua abertura "Boitatá", e a Orquestra de Filadélfia fará no próximo mês a première de "Terra", seu concerto para fagote.

Há, no entanto, uma dificuldade na dramaturgia de "Isolda/Tristão". O texto, de potencial inegável, é longo para o tempo da obra. Há muitas palavras para musicar, e isso impede o desenvolvimento musical pleno. Não há ocasião para alusões, silêncios e elipses. A ópera teria fôlego para facilmente ocupar um espetáculo inteiro.

Isso não acontece em "Ainadamar". A obra de Golijov conecta três personagens históricas, a ativista Mariana Pineda, que no século 19 lutou contra o absolutismo; o escritor Federico García Lorca, assassinado em 1936 pela ditadura espanhola; e a atriz Margarita Xirgu, amiga do poeta exilada no Uruguai.

A performance de cada uma das duas óperas do programa dura aproximadamente o mesmo tempo, cerca de 90 minutos; numa rápida contagem do libreto impresso, vemos que "Isolda/Tristão" tem bem mais que o dobro de texto que "Ainadamar".

Apresentada pela primeira vez no Theatro Municipal em 2015, esta última retorna agora mais madura. E traz a oportunidade única de ver juntas em cena a soprano argentina Marisú Pavón e, no papel de Lorca, a cada vez mais incrível cantora a brasileira Denise de Freitas.

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