Comparar dois autores ou duas obras é também um método de análise literária. Em algumas situações, a comparação acaba equiparando autores no quesito prestígio. É o caso do brasileiro Cruz e Sousa e o francês Charles Baudelaire, ambos poetas simbolistas.
O antropólogo Roger Bastide, conterrâneo de Baudelaire, não teve dúvidas em pôr o poeta catarinense ao lado do autor de "Flores do Mal", obra que é um marco da poesia moderna. Em seu texto canônico "Quatro estudos sobre Cruz e Sousa", Bastide sustenta diferenças e semelhanças entre os poetas.
Sobre um "tema comum a ambos", aponta "o da maldição que pesa sobre o poeta, que o faz a viver à margem da sociedade, como um ser amaldiçoado, vítima de zombaria e do rancor dos homens e que o leva finalmente à revolta".
Entretanto, Cruz e Sousa carregava mais uma condição que o colocava à margem. A condição de homem negro em um país então escravagista. A melancolia derivada da impossibilidade de uma existência plena em um Brasil que escravizava homens como ele percorre sua obra.
Tal tristeza recebe tratamento poético em "Broquéis e Faróis", obra que integra a Coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira. O volume chega às bancas no domingo, dia 24.
"Cruz e Souza era o maldito entre os malditos. Era duplamente o poeta marginal. Quando usa um poema de Baudelaire como epígrafe de 'Broquéis', ele está usando ironia, como se dissesse ‘Não é o Baudelaire o maldito, eu que sou o derradeiro, o último dos homens’. Afinal, ele era um homem negro quando os negros eram escravos", diz Ronald Augusto, crítico literário e autor de "Cruz e Sousa: make it new", contido na obra "Decupagens Assim".
A citação é mais que um mero recurso de alusão, tão comum na literatura. "Não é só uma referência intertextual. Ele usa de um jeito mais poderoso. Ali fica imbricado o sentido da experiência de vida e investimento estético. Não é frívolo, não é apenas pelo exercício estético. Embora seja rebuscado e elaborado, não é apenas pelo virtuosismo técnico", analisa Augusto.
Como poeta simbolista, Cruz e Sousa usa imagens que remetem ao tema da morte e do mundo espiritual, em oposição à realidade. Ele adota também elementos obscuros e diabólicos, como figura de Satã, tal qual Baudelaire.
Em "Monja Negra", o brasileiro escreve: "Não sei que Anjo fatal, que Satã fugitivo,/ Que gênios infernais, magnéticos, sombrios,/ Deram-te as amplidões e o sentimento vivo/ Do mistério com todos os seus calafrios…".
Caveiras também são recorrentes na sua poesia, como no poema "Ressurreição": "Não sinto mais o teu sorrir macabro/ De desdenhosa caveira./ Agora o coração e os olhos abro/ Para a Natureza inteira!"
Outra alegoria frequente nos versos do simbolista é a cor branca. Não há, todavia, uma ideia de embranquecimento do homem negro, como alguns estudiosos já apontaram, o próprio Bastide entre eles. Isso porque a poesia de Cruz e Sousa opera por meio da sugestão e não do significado objetivo.
"O branco é o vazio, a esterilidade, uma certa pureza. Quando ele usa os elementos simbolistas, eles ganham conotação um pouco diferente, porque é um poeta negro escrevendo na periferia do capitalismo. É impossível não ler com os olhos de hoje, mas é preciso olhar com calma e atenção para que esse olhar atual não aponte para um negro que traía os brancos", opina Augusto, mestre em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Segundo o crítico, os efeitos do racismo aparecem, sim, nos chamados biografemas, ou seja, nas memórias e experiências vividas transformadas em signo, como uma "pequena cápsula de experiência vivencial".
Assim, o racismo aparece principalmente como tristeza. "Dessas tristezas que vagam/ Com volúpias tão sombrias/ Que as nossas almas alagam/ De estranhas melancolias", escreveu o simbolista.
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